quinta-feira, 18 de março de 2010

Criança Cigana e a Barbárie


Nesta semana uma cena chocante: uma criança foi retirada a força do colo da mãe e colocada em um abrigo. Isso não seria surpresa há uns 20 anos, mas depois do ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente, isso é inadmissível.

E o que passou pra que isso acontecesse? A mãe estava na rua com a criança, fazendo seu trabalho, que é ler a mão dos transeuntes. Mãe e filha são ciganas.

A polícia disse que cumpriu uma ordem judicial, que dizia que a mãe estava mendigando, usava a criança para comover as pessoas e foi denunciada por alguém.

Ora, esse alguém não sabe que muitas mulheres ciganas lêem a mão? Ah, sim, se estivesse em uma casa, em um bairro nobre, com telefone e hora marcada, como a personagem da novela das oito que vive disso, tudo bem. Mas como ela provavelmente é nômade, não vive mas, sim, sobrevive com o ofício que aprendeu com sua mãe, que aprendeu com a avó, que aprendeu com a bisavó, ela é a escória que não pode criar sua filha.

Sim, as condições não são ideais. Acaso é ideal a vida no abrigo? E cadê o acesso a uma vida digna ao povo cigano? Talvez eles não pertençam ao tais “humanos” que deveriam ter acesso aos “Direitos Humanos”?

Essa semana eu também estive no centro de São Paulo. Vi aproximadamente dez crianças sujas, deitadas pelo chão fazendo um montinho de gente, cheirando cola e bebendo as 10h30 da manhã. Arrisco a dizer que ninguém nem reparava porque eram negras ou pardas. Já a criança da reportagem é branquinha... Que perigo ser “corrompida” pela cultura cigana. Falei cultura? Desculpe aí, na visão do denunciante e da justiça que determinou a separação da criança de sua família, era apenas vadiagem. Um show de intolerância.


Felizmente a criança já está junto a sua família.

Reproduzo aqui as palavras da amiga Yáskara, incansável lutadora pelo direito de seu povo, o povo cigano.

"Bom dia,

Embora a revolta continue, sinto-me hoje mais tranquila, pois a criança cigana arrancada dos braços da mãe de forma truculenta, configurando, sem dúvida, crime de racismo, etc, etc. etc., já se encontra em sua casa. Estiveram ontem em Jundiaí a Apreci-PR (Associação de Preservação da Cultura Cigana) aCERCI (Centro de Estudos e Resgate da Cultura Cigana) e a CCB (Coletivo de Ciganos Calon do Brasil).

Foram horas de tensão? FORAM. De angústia? TAMBÉM FORAM. Basta olhar nossas caras nas fotos.

Fico a me perguntar: Até quando? Quando será dado às Ciganas/os Brasileiras/os o direito de serem respeitadas/os e inseridas/os na sociedade conforme aquele artigo... o 5º da Carta Magna? Cadê as tão almejadas políticas públicas que possam, pelo menos, dar um alento ao Povo Cigano que não tem acesso a documentos de identificação civil obrigatórios, saúde pública, ensino público e permanência na escola, espaços urbanos para armarem as suas barracas, inclusão social e cultural e preservação das tradições, práticas e patrimônio cultural? E não me venham dizer que estou delirando, porque provo o contrário. CADÊ, CADÊ, CADÊ?

Seguem abaixo fotinhos (já perceberam que fotos e filminhos podem ser prova de muitas afirmações julgadas contestáveis, não?) para mostrar o que ocorreu na frente do fórum de Jundiai. Aproveito para agradecer a todas/os que por lá estavam a nos dar força para suportar tanta angústia e humilhação. Obrigada Povo de Religiões de Matriz Africana, Feministas, Comunidade Negra e Segmento LGBT.Foi gratificante sabermos que não estávamos sós. Ufa!

Saudações Ciganas

((* "


Para saber mais sobre o Povo Cigano, clique AQUI.


PS: No vídeo, contrariando todas as normas de segurança, a criança foi levada no branco da frente do carro.

Fonte da imagem: fotografia enviada por Yáskara Guelpa.

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segunda-feira, 8 de março de 2010

Pro inferno com essa de sexo frágil


Recebi o texto abaixo de Ana e o link de Carmem.
Concordo em grande parte com o que o autor diz.

Seja como for, até hoje tem gente (principalmente os homens) que me dizem que não entenderam porque algumas pessoas (principalmente as mulheres) ficaram indignadas com a propaganda que foi tirada do ar!

Ah, sem contar que hoje na hora do almoço tive que ouvir os parabéns de um guarda civil municipal de Diadema e seu comentário que melhor era nos tempos antigos, quando a mulher era valorizada. Pra ganhar minha simpatia ele ainda explicou que valorizar é ceder o assento no ônibus, abrir a porta do carro e carregar as compras. Pra fechar com chave de ouro ele disse que quando a mulher era valorizada, os gêneros se entendiam (sim, ele usou a palavra gênero!).

SOCORRO! Troco meu assento por direitos iguais de fato! Pro inferno com essa de sexo frágil!

E ainda tem gente que acha que o dia 08 de março é de comemoração!
Nosso dia é de luta, pois tem muita coisa por mudar.

Que hoje nossas forças se renovem!
_Salve o Oito de Março!


A devassa da Devassa

Suspensão de propaganda de cerveja estrelada por Paris Hilton escancara os limites do "politicamente correto" e aponta para o desgaste do erotismo na sociedade atual
RENATO JANINE RIBEIRO-
ESPECIAL PARA A FOLHA

Provei a cerveja Devassa num dia no aeroporto. Mas, quando vi na TV sua propaganda com uma norte-americana rica que deve a fama a um vídeo pornô que circulou na internet, achei de mau gosto e perdi a simpatia pela bebida. Ponto. Agora, quando o Conar retirou a propaganda do ar, vale a pena discutir um pouco o assunto.

O Conar é um órgão privado -Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária. Quando alguém fala em regular os excessos da televisão, a mídia costuma citar o Conar como exemplo de como fazê-lo sem o Estado intervir. Quando se para de falar em regulação social, esquece-se o Conar. De todo modo, ele nada tem a ver com o governo.

Numa pesquisa de 2000 que publiquei em meu livro "O Afeto Autoritário" (ed. Ateliê), analisei os julgamentos do Conar que encontrei. Notei uma certa contradição. Quando o Conselho de Enfermagem reclamou de quatro propagandas mostrando enfermeiras como mulheres fáceis, o Conar concordou e as publicidades sumiram.

Já quando psicólogos reclamaram duas vezes porque sua profissão era ridicularizada, o Conar disse que as propagandas eram, só, engraçadas. Em suma, onde para uns há humor, para outros há preconceito; mas a linha de corte depende, muito, do grau de mobilização dos que se sentem ofendidos.

A questão do humor ou do preconceito é ponto em que a publicidade converge com uma preferência dos jornalistas que tratam de entretenimento e variedades: segundo eles, o politicamente correto se distinguiria pela falta de humor. O elogio-padrão a uma peça de teatro engraçada diz que ela é "politicamente incorreta".
"Politicamente correto" é um termo pejorativo, usado para criticar a preocupação, nascida nos EUA, de movimentos sociais com expressões que depreciam grupos historicamente perseguidos. Por exemplo, os verbos denegrir e judiar vêm do preconceito contra negros e judeus -embora ninguém pense nisso hoje, quando os usa.


Piada de português
É difícil, mas necessário, separar o que é justo, para combater um preconceito de largas raízes históricas, e o que é excesso de algumas pessoas que levam, com boa-fé ou mesmo sem ela, longe demais a suscetibilidade. Denegrir, judiar, humor negro não me parecem exprimir, hoje, preconceito. Tampouco vejo problema em piadas de loira, de português, de papagaio e do Juquinha. Já afirmar que "o asfalto é o preto de quem todo mundo gosta", como disse um ministro dos Transportes em 1997, é grave.

E o é justamente porque o ministro o disse sem maldade: mostra que em nossos costumes há brincadeiras preconceituosas que rotulam negativamente grupos discriminados. Sem o "politicamente correto", isso passaria batido.

A propaganda da Devassa recorda que, na TV brasileira, a publicidade de cerveja a alia a mulheres gostosas. Lembro uma publicidade que fazia um corpo feminino tornar-se garrafa de cerveja. Mulheres são convertidas em coisa, em objeto de consumo? São, sim. Aparecer em propaganda de cerveja é coisa de gostosa. Recentemente, [o colunista da Folha] José Simão foi proibido de dizer que uma atriz era devassa (porque a personagem dela, não ela como pessoa, tinha um "bar da Boa").

Se Hilton aceita aparecer como devassa -mesmo acreditando que a palavra quer dizer apenas "sexy", como sua equipe declarou à Folha-, talvez seja uma resposta ao "affair" Simão: ela aceita fundir sua pessoa com sua personagem. Quem gosta de cerveja gosta de gostosa, portanto, cerveja é gostosa, talvez devassa.

Mas, se não há diferença entre a mulher-garrafa e a "devassa", por que saiu do ar esta última propaganda? O Conar pode ter mudado sua percepção das sensibilidades sociais. A redução da mulher a objeto se teria tornado intolerável. Se o Conar deu razão às enfermeiras, mas não aos psicólogos, é porque atua sob pressão -o que é outro modo de dizer que é atento à sensibilidade social.

Pois, se um indivíduo é injustiçado e só consegue justiça fazendo pressão, isso é errado. Mas, se um grupo maior se sente injustiçado e só obtém o que deseja pressionando, isso pode ser positivo. Nas relações macrossociais, justiça não se dá, não se recebe passivamente, mas se constrói. Por isso, se as mulheres recusam o papel de objeto, a decisão do Conar pode ser uma conquista delas.
Contudo, para várias mulheres, tornar-se objeto não é redução, mas aumento, de poder.

"Playboy" e "Big Brother"
É o que leva algumas ao "Big Brother Brasil". Nos anos 90, a revista "Playboy" colhia suas capas nas novelas da Globo.

Hoje, seu maior estoque é o "BBB". Há décadas, a mulher que posava para calendários de borracharia saía mal na reputação. Mas, hoje, na mídia, é ela, como objeto de desejo, que controla o sujeito desejante.

O jogo ficou mais complexo. O sujeito não manda, necessariamente, no objeto. Há mulheres que extraem poder de uma condição de objeto habilmente constituída. Madonna explicitou isso com seus clipes, com seu livro "Sex". O problema é que essa não é uma verdade universal nem majoritária. A mulher atacada sexualmente na rua não controla nada, não tem poder, é vítima de uma violência inadmissível.

Mas um número menor de mulheres -que consegue ser protagonista do que [o filósofo] Walter Benjamin chamava a reprodução mecânica e que hoje chamaríamos a imagem na mídia- ganha dinheiro, fama, poder com isso.

O problema é que há mais estupros do que capas de "Playboy", de modo que o poder e a riqueza de algumas não apagam o abuso sobre muitas. Finalmente: quando a mídia defende o direito (da cervejaria? da socialite? do espectador voyeur?) à propaganda com Paris Hilton, vivemos um fenômeno de desgaste: durante milênios o erotismo esteve no jogo entre o que se vê e o que apenas se adivinha. Mostrar dependia de esconder. Um autor árabe fala do erotismo que emana de um corpo velado: ele se faz imaginar pelo som das joias se chocando, pelo perfume, pelo movimento do corpo andando. Erotismo é imaginação.

Ora, como ficam as coisas quando o corpo se desnuda tanto? Não se trata apenas de transformar a mulher em objeto. Pois muda o registro sensual do corpo. Seria errado achar que as mulheres despidas suscitam menor desejo do que as imaginadas. Nossa sociedade se sexualizou intensamente, com a mostra ilimitada dos corpos objetos.

Falta de imaginação
Não creio que isso vá embotar o desejo, embora digam alguns que é de sua natureza buscar o difícil e desdenhar o fácil. Mas o certo é que, entre o desejo e a realização, o prazo diminuiu. Imaginação exige tempo, demora, frustração, desvio. Corpos se oferecem, se tomam, como cervejas, mas parece que, se aumentou o acesso físico ao corpo alheio, reduziu-se a capacidade de imaginar. Sexo, talvez, sem erotismo.


RENATO JANINE RIBEIRO é professor titular de ética e filosofia política na USP. O título deste texto é uma homenagem do autor, totalmente fora de contexto, ao belo livro de Kenneth Maxwell sobre a Inconfidência Mineira (Paz e Terra).
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terça-feira, 2 de março de 2010

Moçambican@


Uma amiga Raposa, que estava cansada de jobar no mundo cão, enviou-me texto por email, que se chamava "Moçambicano não cumpre acordo ortográfico".

Além de rir e recordar com carinho do sotaque e da maneira moçambicana de dizer as coisas, percebi que o título não tinha muita conexão com o conteúdo.

Busquei na net e minha impressão estava certa. Acessei o Xikwembo, blog de Joana Fartária.
Reproduzo abaixo, mas vale a pena uma visita ao blog citado.


Em Moçambicano


São 6 da manhã.

Moçambicano não dorme, ferra.

O despertador toca e ele não se levanta cedo, madruga.

E não vai tomar duche, vai duchar.

E não se arranja, grifa-se bem.

Depois não toma pequeno-almoço, mata-bicha.

E não bebe café solúvel e pão com doce, toma café batido e bread com jam.

Não sai de casa para ir trabalhar, vai no serviço.

E quando chega ao local de trabalho não pede desculpa por ter atrasado, diz sorry lá, que tive problema de transporte.

E não trabalha até ao meio dia, djoba até àquela hora das 12.

E aí não pede ementa, pede menu.

E não come, tacha.

Não come batata frita, come chips.

Não come salsichas, come vorse.

Não come costeleta, come t-bone.

E não bebe uma laurentina preta, toma uma escura.

E não fala com o amigo sobre a namorada, bate papo "brada, minha dama".

E não gosta muito, grama maningue.

E na saída do restaurante não vê as mulheres que passam, aprecia as damas.

E não seduz, paquera.

E não faz convite, pede contacto.

E não a segue, vai à sua trás.

E não encontra um conhecido mais velho, apanha um jon cota.

Na rua não compra cajú, compra castanha.

E não tira fotografias, fota.

No escritório, a empregada não despeja o lixo, no ofice trabalhadora vai deitar.

E não traz o jornal, leva.

E não põe insecticida, baygona.

E não tem reuniões, tem meetings.

E no computador ele não escreve, taipa.

E depois não faz impressão, printa.

E não trabalha as fotografias em Photoshop, fotoshopa.

E para fazer um intervalo não vê o patrão, tcheka o boisse.

E não sai para dar uma volta, dá um djiko.

E não escreve sms para a amiga colorida, manda mensagem para a pita.

E não mente dizendo que está ocupado, mafia que tá bizi.

Moçambicano não trai, cornea.

Não caminha, estila.

Não se faz de difícil, jinga.

Não acaba uma tarefa, ultima.

E no fim do trabalho não vai, baza.

E com os amigos não tem negócios, tem bizne com bro.

E ao fim do dia não vai ao ginásio, djima.

E não está musculoso, tá big.

E não tem bicicleta, tem bikla.

E não faz saudação batendo na mão do amigo, deketa.

E não gosta de aproveitar a vida, enjoya laifa.

De tarde não bebe chá e come pão com manteiga e queijos, toma chá.

E não vai buscar a namorada que está num cabeleireiro distante, a arranjar as unhas e a fazer tranças no cabelo, vai apanhar dama que faz unha e entrança láaaaaaa no salão.

E não bebem um refrigerante, tomam refresco.

E a namorada não usa mini-saia e saltos altos e anda descapotável, põe sainha e uns saltos e tá descartável.

E não lhe diz que é bonita, diz "tens boas".

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Imagem: Três irmãs artistas, que conheci na festa das crianças de 2009, em Maputo.

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