quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Repúdio ao Rodeio de Gordas

Texto postado originalmente em SedeDeQuê?

"Rodeio das Gordas", parece absurdo, mas infelizmente não é!

Isso aconteceu no InterUnesp, os jogos universitários da UNESP_ Universidade Paulista Julio de Mesquita Filho.

Envolveu em torno de 50 rapazes, que agrediram as moças durante o evento.

O tal "rodeio" consistia em um rapaz chegar jogando charme em uma universitária gordinha e depois agarrá-la como se fosse um peão na arena, de forma que quem permanecesse em cima dela por mais tempo era o vencedor.

Enquanto a "presa" se debatia, os outros gritavam: "_ Pula, gorda bandida"
(talvez em referência ao touro Bandido, que ficou conhecido em uma novela global que falava de rodeios). Há ainda o indicativo que em uma próxima edição do InterUnesp o tempo será "cronometrado".

Vejam a reportagem na íntegra aqui:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/820901-alunos-universitarios-agridem-colegas-da-unesp-em-rodeio-de-gordas.shtml

Para se manifestar, escreva para o reitor, o vice e toda assessoria. Emails pra "copiar e colar": reitor@unesp.br, hvoorwald@reitoria.unesp.br, durigan@reitoria.unesp.br, fatima@reitoria.unesp.br, elica@reitoria.unesp.br,lauroh@reitoria.unesp.br, pimentel@rc.unesp.br, briganti@reitoria.unesp.br, sajorge@reitoria.unesp.br,beth@reitoria.unesp.br, visone@reitoria.unesp.br, jjgebara@reitoria.unesp.br, gennari@foa.unesp.br,ierocha@assis.unesp.br

Imagem que ilusta esse post: Botero, Donna Allo Specchio 2003

Abaixo, a carta de repúdio enviada pela Coordenadora de nosso Projeto, ao vice-diretor da Unesp-Assis.

Prezado Prof. Ivan Esperança,

por uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo de hoje (27/10), acabo de tomar conhecimento - com horror! - do que ocorreu no evento esportivo que reúne todas unidades da UNESP, uma das mais conceituadas instituições de ensino superior do país. Vi na reportagem que alunos se divertiram às custas do excesso de peso das alunas, que certamente não se enquadram no padrão de beleza a que as mulheres se sentem compelidas a seguir devido à pressão social e reforçada fortemente pela mídia com o intuito de vender produtos de beleza e cirurgias estéticas, submentendo-se muitas vezes a dietas procedimentos horrorosos apenas para se sentirem atraentes para os homens.

Não sei se o senhor atentou para o fato de que este tipo de violência é cometida somente contra as mulheres - é o que chamamos de violência de gênero. Nenhum homem se sente tão desvalorizado - e muito menos tem sua auto-estima tão rebaixada - q uanto as mulheres por causa de seu peso, do formato de partes do seu corpo, cor do cabelo, roupas que veste etc. Então, professor, a pressão social por esta "ditadura da beleza" já se constitui por si uma violência de gênero, na medida em que submete, agride, violenta, espolia, maltrata e corrói a dignidade apenas das mulheres.

A promoção deste estúpido e abominável "Rodeio das gordas", então, é simples e absolutamente inaceitável. Porque não apenas se utiliza - e leva a extremos insuportáveis - a violência de gênero, mas sobretudo porque o faz com requintes de crueldade, sem simpatia, sem empatia, sem nenhum cuidado com as mulheres que sofreram tamanha agressão. Tal "brincadeira" (termo totalmente inapropriado para designar o que aconteceu) reforça a idéia de que as mulheres são apenas objeto de consumo para os homens, que se sentem no direito de não apenas descartá-las quando não são interessantes esteticamente para eles, mas podem ser inclusive alvo de escárnio público, violência, crueldade, humilhação.

Episódios deste tipo - como também o acontecido na UNIBAN - preocupam-me principalmente por serem um sinal de alerta: que tipo de seres humanos estamos formando, se estas pessoas que pertencem a uma elite cultural e intelectual no país violam - por prazer! - os direitos humanos de suas colegas, inflingindo a elas um tipo de tortura que vai deixar marcas para sempre? Que tipo de gente estamos formando, que se dá o direito de "montar" sobre suas colegas para ridicularizá-las em público, coisa que parcela da sociedade não aceita mas que se faça nem com animais de carga ou de produção, por se configurar como crueldade contra os animais? Que tipo de sociedade, afinal, queremos construir, prof. Esperança? Uma sociedade que reforça os estigmas, os estereótipos, a discriminação, a violência, ou uma sociedade que pode respeitar e conviver com a diversidade, com as diferenç as? Devo dizer que estou em pânico, professor, e sem querer fazer trocadilho, estou sem nenhuma esperança. Não quero que as gerações futuras vivam num Brasil nazista, não quero o totalitarismo selvagem que tortura, fere e mata por diversão! Estou em pânico.

Escrevo-lhe agora movida pelo horror e pela indignação. Fiz um leve exercício de empatia - coloquei-me no lugar dessas meninas por alguns instantes e, mesmo em imaginação, senti-me completamente estraçalhada, violentada, destruída. E então, professor, escrevo-lhe também porque me preocupou muito sua declaração, publicada na mesma matériado jornal: "Vamos ouvir os envolvidos e estudar as medidas disciplinares, mas não queremos estabelecer um processo inquisitório". Porque isso me cheirou a leniência, sabe? Me cheirou à uma compaixão meio deslocada pelos agressores. Porque não estamos falando em queimar na fogueira moral os que pensam diferentemente de nós, como ocorria na Inquisi ção. Nem pensamos que a UNESP deva queimar as bruxas, até porque a inquisição foi muito mais violenta com as mulheres do que com os homens.

Não, professor Esperança, não queremos inquisição, porque aceitamos e respeitamos a diversidade. O que nós queremos - e exigimos - é uma punição exemplar para todos os responsáveis pela tremenda violência cometida contra essas meninas, que agora devem estar encolhidas em suas casas, sofrendo porque foram submetidas à mais terrível das punições somente por não serem as gostosas disponíveis para serem desfrutadas por machos selvagens!

Professor Esperança, o senhor tem à sua frente uma oportunidade rara de fazer justiça, de não deixar que a impunidade continue movendo parcelas da elite de nosso país. O senhor tem uma oportunidade única de dar o exemplo, de mostrar que nem o senhor, nem a UNESP, nem a sociedade seremos coniventes com a violência bárbara e sem sentido cometida contra essas menin as. O senhor tem a chance de contribuir para que a violência contras as mulheres não seja reforçada em todo o país, mais uma vez, pela repercussão que este caso terá.

Professor, contamos com sua integridade ética e com o seu senso de justiça. Estaremos todos e todas olhando para a UNESP nos próximos dias, com esperança de que o senhor nos ajude a proteger milhares de meninas e mulheres que sofrem - e morrem - pela enorme e impune violência de gênero em nosso país.

Atenciosamente,

Valéria Melki Busin

domingo, 24 de outubro de 2010

Ela não é Severino (parte 1)

Há aproximadamente um mês, minha amiga teve uma infecção nas pernas. Nada de diferente do que já teve incontáveis vezes, porém desta vez não pode se automedicar. As automedicações anteriores fizeram com que seu nível de colesterol estivesse no limite.

Entendo perfeitamente esse receio de ir ao médico e recorrer ao balcão da farmácia e/ou conselho das/dos amigos. Por vezes os “doutores”, e outr@s profissionais da saúde que se julgam acima do bem e do mal, só fazem cuidar de nosso corpo e estraçalhar com nossa dignidade. Por sorte, convivemos com muit@s que fogem a essa “regra”.

Mas voltemos ao causo. Infecção instalada, automedicação proibida, o problema só fez aumentar, apesar das tentativas dos querid@s médic@s que trabalham conosco. Nada passava a febre, o inchaço, a vermelhidão e o alastramento do problema. O que havia começado nas canelas não só piorava como descia para os tornozelos e subia para as coxas.

Naquele dia ela não foi trabalhar. Ligou para dizer que usaria seu banco de horas crédito para ficar em casa mais uns dois dias. A licença saúde tinha acabado. Decisão descabida. Avisei a diretoria e bolamos um plano: as horas não seriam aceitas, ela apenas poderia se ausentar com outro atestado. Planos maléficos para o bem!

Quando eu a encontrei para acompanhá-la até o Hospital Emílio Ribas, tive que controlar para não rir de sua ingenuidade. Trazia consigo apenas com uma pequena bolsa com documentos pessoais e históricos do tratamento atual. Nem sequer passava por sua cabeça que ficaria os próximos dias internada, tentando vencer a infecção.

Chegando ao hospital de destino, tínhamos que apresentar o RG para entrar no recinto. Ela como paciente e eu como acompanhante recebemos um único número, indicativo do Pronto-Socorro.

Entramos no pátio, seguimos até o prédio correspondente e lá, novamente, tivemos que apresentar os documentos. E aí, a primeira manifestação de receio dela:

_ Quando for minha vez de passar na consulta me chamam pelo nome?

_ Não, respondeu a funcionária, chamam pelo número.

Sentadas, aguardamos pacientemente as 2 horas de espera para a triagem. Ela com muita dor. Eu, com muita preocupação.

Número no painel , era nossa vez. Entramos na sala com a enfermeira, após olhar minha amiga e o nome da ficha, que perguntou como ela gostaria de ser chamada. “Zaila”, foi a resposta. Assim, a enfermeira anotou ZAILA, em azul bem grande, ao lado do que já estava lá.

A consulta seguiu.

Enfermeira: _ Você tem HIV?

Zaila: _ Não.

Enf: _ Quando o problema das pernas começou?

Zá: _ Desta vez, faz mais de uma semana e não melhora.

Enf: _ Teve febre?

Zá: _ Todos os dias.

Enf: _ Quando foi seu último exame de CD4?

Zá: _ Hã?

Eu: _ Ela já disse que não tem HIV.

Enf (visivelmente constrangida): _ Desculpe, não estou acostumada. Atendo em outro setor do hospital.

Voltamos a sala de espera.

_ ZAILA!, gritou a médica.

E a consulta transcorreu muito bem. Falamos da doença e da vida. Todas nós trabalhamos com pessoas em comum. O SUS é assim. Mas, como eu já imaginava, internação foi a conduta.

Fomos encaminhadas para os próximos procedimentos. Um soro, pra começar.

Zaila foi sentar em uma das poltronas da sala de medicação. Eu esperava na porta. O técnico de enfermagem, vendo a nova paciente recém-chegada, procurou a ficha no balcão.

Tec Enf (do balcão para o outro lado da sala): _ Severino é você?

Zaila não responde. Silenciosamente abaixa cabeça, enquanto os demais pacientes da sala de medicação voltaram-se para analisar milimetricamente sua pessoa.

Tec Enf (elevando a voz, ainda no balcão): _Severino é você ou não é?

Zaila (sentada, com mão no rosto e cotovelo apoiando nos joelhos): _ É.

O técnico de enfermagem, pega a ficha, vem à porta e me dirige a palavra:

_ Ele é o Severino mesmo?

Eu aponto para o nome escrito à caneta na ficha:

_ Ela é Zaila.

Tec Enf: _ Mas é Severino?

Eu (apontando alternadamente para os dois nomes no papel): _ Está escrito Zaila e se está escrito aqui, é pra ser chamada assim.

Neste momento um médico mais velho entra no corredor. Não sei bem quem era a profissional ao lado dele, mas ela me puxa da porta onde eu ainda estava e explica.

Profissional (apresentando a minha pessoa ao médico): _ Ela é a assistente social que está com o paciente.

Médico mais velho: _ Onde eu o interno?

Eu (encarnando a AS que não sou): _ Interne-a na ala feminina. Afinal, creio que nenhuma Zaila seja compatível com um quarto masculino.

Médico: _ Mas é Severino!

Eu: _ A Juíza diz que é Zaila, sexo feminino. Então, o lugar dela é na ala feminina!

Médico e outra profissional se foram. E fiquei me perguntando o porquê de eu ter que ser uma assistente social. As Zailas que nasceram Severinos não podem ter amigas, colegas, irmãs, primas? Todas as Zailas tem que andar com uma assistente social a tiracolo? Ela não podem ser simplesmente tratadas com respeito e dignidade, independente de sua companhia?

(continua no próximo post)

Fonte da imagem: WYZ

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Vamo brincá de teta?

Pra esses momentos em que desejamos ser totalmente alienad@s pra não se dar conta do cenário político eleitoral, com seus (des)acordos, (não)ditos, (re)ações, cartas, descartes e vendagens ideológicas.


Tô Só
de Hilda Hilst para o "Correio Popular" de Campinas-SP

Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô? Vamo brincá que a peste passô, que o HIV foi bombardeado com beagacês, e que tá todo mundo de novo namorando? Vamo brincá de morrê, porque a gente não morre mais e tamo sentindo saudade até de adoecê? E há escola e comida pra todos e há dentes na boca das gentes e dentes a mais, até nos pentes? E que os humanos não comem mais os animais, e há leões lambendo os pés dos bebês e leoas babás? E que a alma é de uma terceira matéria, uma quântica quimera, e alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais pro beleléu? E que não há mais carros, só asas e barcos, e que a poesia viceja e grassa como grama (como diz o abade), e é porreta ser poeta no Planeta? Vamo brincá

de teta

de azul

de berimbau

de doutora em letras?

E de luar? Que é aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar...

Vamo brincá de pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro?

Vamo brincá de ninho? E de poesia de amor?

nave

ave

moinho

e tudo mais serei

para que seja leve

meu passo em vosso caminho (*)

Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão da gente e nunca mais ser cronista?


(*) Trovas de muito amor para um amado senhor - SP: Anhambi, 1959.


Fonte da imagem 1: http://vivermenopausa.com/


domingo, 3 de outubro de 2010

Manifesto dos Brancos

Esses dias estava me lembrando da minha professora negra.
Sim, eu tive UMA professora negra, e foi só na pós-graduação.

Se por um lado esse dado (o de ter tido apenas UMA) é bastante grave, por outro fico feliz que ela seja uma doutora super respeitada e muito competente.
Nunca conversei disso com ela. Não éramos muito próximas. Não sei por onde anda.

Mas o fato que eu a admirava duplamente:
1) por ser uma ótima professora.
2) por ser mulher e negra e psicóloga e doutora e professora em uma faculdade de medicina.

Hoje, lendo o "Manifesto dos Brancos", lembrei-me dela.
Não sei o que ela pensa sobre as cotas. Não sei o quanto de preconceito ela sofreu na vida... Apenas intuo que é uma lutadora por saber o quanto sofrem as mulheres, @s negr@s e as mulheres negras neste Brasil.



Manifesto dos Brancos
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Este texto é um manifesto escrito e subscrito por brancos que compõem a comunidade escolar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele é uma retumbante admissão pública, por nossa parte, de que vivemos em um contexto de exclusão estrutural de negros e indígenas dos benefícios e espaços de cidadania produzidos por nossa sociedade e onde, ao mesmo tempo, é produzida uma teia de privilégios a nós brancos, que torna completamente desigual e desumana nossa convivência. Somos opressores, exploradores e privilegiados mesmo quando não queremos ser. O racismo não é um "problema dos negros", mas também dos brancos. É pelo reconhecimento destes privilégios que marcam toda nossa existência, mesmo que nós brancos não os enxerguemos cotidianamente, que exigimos a imediata aprovação de Ações afirmativas de Reparação às populações negras e indígenas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

No Brasil vivemos em um estado de racismo estrutural. Já é comprovado que raça é um conceito biologicamente inadmissível, só existe raça humana e pronto. Mas socialmente, nos vemos e construímos nossa realidade diária em cima de concepções raciais. Portanto, raça é uma realidade sociológica. Não é uma questão de que eu ou você sejamos pessoalmente preconceituosos. Mas é só olhar para qualquer pesquisa que veremos como existe um processo de atração e exclusão de pessoas para estes ou aqueles espaços sociais, dependendo de sua cor. Não é à toa que não temos quase médicos negros, embora eles sejam a maioria nas filas dos postos de saúde; que quase não vemos jornalistas negros, mas estes são expostos diariamente em páginas policiais; que não temos quase professores negros, especialmente em posições com melhores salários, e vemos alunos negros apenas em escolas públicas enquanto, na universidade pública quase só encontramos brancos.

A situação dos indígenas não é diferente, quando eles ainda sofrem lutando pelo direito mínimo de ter suas terras e aldeias, mesmo isso lhes é surrupiado pelos brancos. Vamos parar com esta falácia de dizer que não aceitamos cotas raciais na universidade, porque não queremos ser racistas: se vivemos no Brasil, se fomos criados nesta cultura, se construímos nossas vidas dentro deste conjunto de relações onde a raça é um elemento determinante, somos todos racistas! Não fujamos da realidade. Não usemos a falsa desculpa de que não queremos criar divisões entre raças no Brasil. Nossa sociedade poderia ser mais dividida racialmente do que já é hoje?

O estudo de Marcelo Paixão intitulado "Racismo, pobreza e violência", compara o IDH dos brancos e dos negros dentro do Brasil. O IDH tenta medir a qualidade de vida das populações, combinando os três fatores que, por abranger, cada qual, uma imensa variedade de outros, seriam os essenciais para a medição: renda por habitante, escolaridade e expectativa de vida. Na última versão do IDH, de 2002, o Brasil ocupa o 73º lugar entre 173 países avaliados, mesmo possuindo todas as riquezas nacionais e sendo o 11º país mais desenvolvido economicamente no mundo. Porém, entre 1992 e 2001, enquanto em geral o número de pobres ficou 5 milhões menor, o dos pretos e pardos ficou 500 mil maior. [Consideram-se brancos 53,7% dos brasileiros; pretos ou pardos, 44,7%, que chamaremos, hora em diante de negros]. O estudo mostra que Brasil dos brancos seria, na média o 44º do mundo em matéria de desenvolvimento humano, ao passo que o Brasil dos negros estaria no 104º lugar!!!

Nada disso é novidade, porém, para quem aceita viver com os olhos minimamente abertos. Temos que reconhecer que vivemos num sistema estruturalmente racista, que se reproduz em cima de mecanismos constantes de exclusão e exploração dos negros e de privilégios naturalizados aos brancos. Em um sistema racista, pessoas brancas se beneficiam do racismo, mesmo que não tenham intenções de serem racistas. Nós brancos não precisamos enxergar o racismo estrutural porque não sofremos diariamente diversos processos de exclusão e tratamento negativamente diferencial por causa de nossa raça. Nossa raça (e seus privilégios) são tornados invisíveis dia-a-dia. Este sistema de privilégios invisíveis a nós brancos é que nos põe em vantagens a todo instante, por toda nossa vida, em todas as situações, e que destroça qualquer tentativa de pensarmos que estamos onde estamos apenas por méritos pessoais. Que mérito puro pode ter qualquer branco de estar no lugar confortável em que se encontra hoje, mesmo que tenha saído da pobreza, dentro de um sistema que lhe privilegiou apenas por ser branco, ao mesmo tempo em que prejudicou outros tantos apenas por serem negros?

Vamos apresentar uma breve listinha de circunstâncias em nossas vidas que expõem nossos privilégios de brancos e que, embora não percebêssemos, embora os víssemos apenas como relações naturais para nós, por sermos pessoas normais e "de bem", foram decisivas para nos trazer onde estamos (e por não serem vivenciados também por negros e indígenas, seu resultado é fazer com que seja tão desproporcional o número destas populações dentro da UFRGS, por exemplo): 1) Sempre pude estar seguro de que a cor da minha pele não faria as pessoas me tratarem diferentemente na escola, no ônibus, nas lojas, etc; 2) Estou seguro de que a cor da pele dos meus pais nunca os prejudicou em termos das busca ou da manutenção de um emprego; 3) Estou seguro de que a cor da pele dos meus pais nunca fez com que seu salário fosse mais baixo que o de outra pessoa cumprindo sua mesma função; 4) Posso ligar a televisão e ver pessoas de minha raça em grande número e muitas em posições sociais confortáveis e que me dão perspectivas para o futuro; 5) Na escola, aprendi diversas coisas inventadas, descobertas, grandes heróis e grandes obras feitas por pessoas da minha raça; 6) A maior parte do tempo, na escola, estudei sobre a história dos meus antepassados e, por saber de onde eu vim, tenho mais segurança de quem sou e pra onde posso ir; 7) Nunca precisei ouvir que no meu estado não existiam pessoas da minha raça; 8) Nunca tive medo de ser abordado por um policial motivado especialmente pela cor da minha pele; 9) Já fiz coisas erradas e mesmo ilegais por necessidade, e nunca tive medo que minha raça fosse um elemento que reforçasse minha possível condenação; 10) Posso ir numa livraria e perder a conta de quantos escritores de minha raça posso encontrar, retratando minha realidade, assim como em qualquer loja e encontrar diversos produtos que respeitam minha cultura; 11) Nunca sofri com brincadeiras ofensivas por causa de minha raça; 12) Meus pais nunca precisaram me atender para aliviar meu sofrimento por este tipo de "brincadeira"; 13) Sempre tive professores da minha raça; 14) Nunca me senti minoria em termos da minha raça, em nenhuma situação; 15) Todas as pessoas bem sucedidas que eu conheci até hoje eram da mesma raça que eu; 16) Posso falar com a boca cheia e ficar tranqüilo de que ninguém relacionará isso com minha raça; 17) Posso fazer o que eu quiser, errar o quanto quiser, falar o que eu quiser, sem que ninguém ligue isso a minha raça; 18) Nunca, em alguma conversa em grupo, fui forçado a falar em nome de minha raça, carregando nas costas o peso de representar 45% da população brasileira; 19) Sempre pude abrir revistas e jornais, desde minha infância, e estar seguro de ver muitas pessoas parecidas comigo; 20) Sempre estive seguro de que a cor da minha pele não seria um elemento prejudicial a mim em nenhuma entrevista para emprego ou estágio; 21) Se eu declarar que "o que está em jogo é uma questão racial" não serei acusado de estar tentando defender meu interesse pessoal; 22) Se eu precisar de algum tratamento medico tenho convicção de que a cor da minha pele não fará com que meu tratamento sofra dificuldades; 23) Posso fazer minhas atividades seguro de que não experienciarei sentimentos de rejeição a minha raça.

Esta realidade destroça meu mito pessoal de meritocracia. Minha vida não foi o que eu sozinho fiz dela. Muitas portas me foram abertas baseadas na minha raça, assim como fechadas a outras pessoas. A opção de falar ou não em privilégios dos brancos já é um privilegio de brancos. Se o racismo, e os privilégios dos brancos são estruturais, as ações contra o racismo devem ser também estruturais. Racismo não é preconceito: racismo é preconceito mais poder. Se não forçarmos mudanças nas relações e posições de poder em nossa sociedade, estaremos reproduzindo o racismo que recebemos. E agora chegou a hora de a universidade dizer publicamente: vai ou não vai "cortar na própria pele" o racismo que até hoje ajudou a reproduzir, estabelecendo imediatamente Cotas no seu próximo vestibular? Se mantivermos o vestibular "cego às desigualdades raciais" estaremos, na verdade, mantendo nossos olhos fechados para as desigualdades raciais que nós mesmos ajudamos a reproduzir sociedade afora.

Nós, brancos da universidade que assinamos esta carta já nos posicionamos: exigimos cortar em nossa própria pele os privilégios que até hoje nos sustentaram. Cotas na UFRGS já!




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