quarta-feira, 27 de julho de 2011

Homem Grávido no Largo 13

No País da Pizza, do Futebol, da Cerveja e da Bunda

Tem gente que acha que o casamento civil já é lei no Brasil, valendo para todas as pessoas. Pros desavisados, abaixo um pouquinho daquilo que NÃO conseguimos (ainda?).

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Depoimento de um Cidadão Homoafetivo Discriminado no País da Pizza, do Futebol, da Cerveja e da Bunda

Eu, Milton Cesar Pereira de Sá, e meu companheiro, Sandro Luis do Nascimento, tornamos pública nossa indignação e revolta contra a histórica e ainda atual situação discriminatória em relação às pessoas de orientação sexual homoafetiva – sendo esta contrária à dita orientação pseudo-normativa-implícita-social chamada de heteroafetiva.

Em nosso caso explicito, temos um relacionamento homoafetivo a mais de 5 anos (mais precisamente 8 anos e 2 meses). Há um ano atrás, celebramos um contrato de união homoafetiva, registrado em cartório de notas, de forma que possamos “tentar” manter nossa vida conjugal em acordo com os princípios civis; mas, sendo este um contrato entre duas pessoas, não é confiável em instâncias judiciais que sua interpretação ou validade não possa ser contestada.

Com a decisão do Supremo Tribunal Federal em equiparar os direitos dos casais homoafetivos aos casais heteroafetivos (até então, vergonhosamente únicos privilegiados pela nossa legislação), decidimos oficializar o reconhecimento de nossa relação em âmbito civil. Desta forma, em junho deste mesmo ano, procuramos o Cartório de Registro Civil da cidade de São Caetano do Sul, onde fomos muito bem recebidos pelo Sr. Wagner Zago (e todos os funcionários do estabelecimento), orientando-nos em todos os aspectos.

Demos entrada em nosso pedido de casamento civil, onde como qualquer casal heterossexual, cumprimos com todas as obrigações de praxe: documentação, testemunhas e taxas. Tivemos o proclama publicado no jornal Tribuna do ABCD, na edição datada de 16 de julho de 2011. Nosso processo no Cartório de Registro Civil de São Caetano do Sul é de Número 485/2011, Livro 11, Folha 20, Protocolo 1505/2011 – documento este de acesso público, como qualquer outro existente em Cartório.
Em primeira alçada, nosso pedido foi aprovado pelo procurador responsável da Comarca de São Caetano do Sul, sendo que o mesmo gentilmente anexou à documento outros casos semelhantes, já aprovados pelo judiciário deste país, a fim de embasar sua aprovação e auxiliar a próxima alçada.

Em segunda alçada, entretanto, tivemos nosso pedido negado pela juíza de direito Daniela Anholeto Valbão, na data de 26/07/2011, no Fórum Judiciário do Estado de São Paulo – Comarca de São Caetano do Sul (comumente conhecido por Fórum de São Caetano – residente na Estrada das Lágrimas, entre o Conjunto dos Radialistas e o Jardim São Caetano) na qual alega que não existe legislação que permita a união de pessoas de mesmo sexo (homoafetivos), estando esta união restrita somente aos heteroafetivos.

Atualmente, eu e meu companheiro iremos ao Cartório de Registro Civil de São Caetano do Sul, neste sábado (30 de julho de 2011) para oficializar nosso conhecimento de negativa ao nosso pedido, quando enfim teremos pleno acesso aos autos do processo civil.

ESTAMOS PROFUNDAMENTE INDIGNADOS!

Sou morador da cidade de São Caetano do Sul a mais de 30 anos. Sou social, civil, trabalhista e economicamente ativo – meu companheiro também!

Além de recolher impostos como pessoa física, sou autônomo (trabalho na área de informática), logo, tenho empresa aberta em São Caetano do Sul, desta forma, também sou recolhedor de impostos como pessoa jurídica, para o Município de São Caetano do Sul, o Estado de São Paulo e a União (Brasil).

Recolho impostos que servem unicamente para o âmbito social e sou discriminado, considerado cidadão de segundo nível, desprivilegiado em mais de 70 direitos, visto como pária, transmissor de HIV, vergonha da masculinidade, diferenciado, desvirtuado, pecador, imoral, degenerado, doente, “mulherzinha”, entre outros tantos termos vexatório – agora acumulo isso a tudo a um embasamento jurídico como atestado público! Vergonha de ser cidadão brasileiro! Vergonha de ser humano!

Mas o que fazer se em São Caetano do Sul, considerada a “Cidade de Primeiro Mundo” do Brasil, nossa realidade é calada e falsificada: números são escondidos pelos nossos governantes!

Dizem que São Caetano do Sul não tem crimes hediondos – mentira! São Caetano do Sul não tem miséria – mentira! São Caetano do Sul tem baixos índices de violência – mentira! São Caetano do Sul não tem homossexuais – MENTIRA!!! Temos sim e temos muitos! Sendo homossexual sou plenamente capacitado a reconhecer meus semelhantes – e não sou parte de um agrupamento de meia dúvida, uma dezena ou mesmo uma centena. Somos centenas, se não milhares de homossexuais moradores em São Caetano do Sul, cidade esta que nunca teve um único programa que invista em anti-homofobia! Se há uma coisa que aprendi sendo um cidadão sulcaetanense é: quer ser gay, vá para os redutos e boates de São Paulo!

Dizem que o ABCD é homofóbico? Pois estão correto! E o epicentro da homofobia velada, mandatória, outorgada desde a sociedade até os três poderes está em São Caetano Sul – que não admite a existência de homossexuais, falsificando estatísticas!

Dizem que os homossexuais querem destruir a família? Quanta vergonha! Quanto ostracismo! Quanto anarquismo cronológico-evolucionista! Prestem atenção: ouvimos isso ao longo da história, mundial e local, em muitos outros aspectos:
1. Durante a luta para acabar com a escravidão religiosos e os ditos “moralistas” deste país utilizaram a mesma temática: os negros acabariam com a família, com a moral, com os bons costumes. Isso aconteceu? Aquele livrinho discriminatório a que intitulam de “Bíblia” foi alterado? Não! Continua dizendo que deus puniu os de pele cuxim (preta em hebraico antigo). Evoluímos e criamos vergonha na cara e os negros estão livres. Mas tivemos que criar uma lei anti-racista para que houvesse uma mordaça e uma conduta policitamente correta. Sim, correta e não verdadeira, pois racismo ainda existe, mas pelo menos existe algo que os proteja de gente dita “moral e religiosamente correta”.
2. Quando a mulher saiu da asa do marido e ganhou sua liberdade e sua igualdade de direito, os ditos “moral e religiosamente corretos” atacaram de novo com os mesmos argumentos! A família acabou? A moral foi destruída? O “dito alcoviteiro Deus Cristão” destruiu o mundo? Não! Evoluímos novamente! Mas temos que ter leis que as protejam, como a Lei Maria da Penha – afinal, tudo não passa de uma aparência “politicamente correta”.
3. Quando o biquíni surgiu, os ditos “moral e religiosamente corretos” atacaram novamente com os mesmos argumentos! A família acabou? A moral foi destruída? Não! Leila Diniz foi a primeira mulher a ser xingada neste país para que hoje o biquíni se tornasse uma peça corriqueira no guarda-roupa feminino. Evoluímos novamente.

Estou farto e cansado deste país, destes moralistas, destes religiosos, destes políticos, destes juízes – estou farto de uma luta silenciosa. Estou farto de ter de lutar todo o dia para vencer o preconceito.

Estou farto de arcar com todas as minhas obrigações civis, políticas e econômicas e ser mantido a margem da sociedade, tratado como cidadão de segunda linha, de uma “casta” impura e rebaixada! Não sou um reduto, são ou um beco – sou um ser humano, pleno de minhas capacidades físicas e mentais (até além da conta – tenho QI superior a 170), pleno de minha cidadania, consciente de minha existência, pleno de sentimentos bons e ruins como qualquer outro ser humano psiquicamente normal. Sou capaz de amar e odiar, gostar e detestar, sorrir e chorar quanto qualquer outro dito heterossexual. Quando me corto, seu sangro (vermelho!), como qualquer outro heterossexual!

Tenho vergonha de parte deste país que privilegia os corruptos, os malandros, o jeitinho brasileiro, a discriminação, a politicagem, os religiosos (principalmente os canalhas e fanáticos), uma dita religião “pseudo-normativa” cristã e seu livro que evoca discriminação, racismo, xenofobia, assassinato, incesto, preconceito, violência, conivência com criminalidades, abuso de poder, narcisismo, entre outros! Tenho vergonha de ser deixado ao léu quanto à equiparação de direitos civis, dependendo exclusivamente da “boa vontade alheia” dos nossos legisladores e dos nossos juízes – que de imparciais não tem em nada!!! Tenho vergonha de viver em um Estado dito “Laico de Direito”, mas que permite embasamento governamental, legislativo e judiciário em princípios religiosos, todos arraigados unicamente da pseudo-normativa “religião cristã”. Tenho vergonha dos nossos legisladores que abrem a boca para cuspir besteiras, discriminação, desconhecimento, que não trabalham para uma sociedade igualitária de fato e de direito, mas para seus “lobis”, seus redutos, seus preconceitos, suas ganâncias!

Tenho vergonha de ser um cidadão sulcaetanense e ter sido discriminado em escolas públicas sem nenhum amparo e ainda ser discriminado pela sociedade local – não suporto mais a mordaça que não me permite dizer quem e o que eu sou! Não suporto mais ver outros como eu, passar pelo mesmo que eu passei e ver que em nada a “bela cidade do primeiro mundo do Brasil” mudou ou faz para ser diferente, além de esconder para debaixo do tapete sua realidade!

Tenho nojo de ser humano em um país que termina em pizza, futebol, cerveja e bunda e ainda se diz moralista e religioso!

Tenho fé, que vem primeiro que qualquer religião. Tenho caráter! Tenho força! Tenho masculinidade! Tenho equilíbrio! Tenho sobriedade! Tenho discernimento! Tenho HUMANIDADE! Só não posso ser igual, pois sou único, como cada um de nós o é como indivíduo. Mas sou exatamente igual a você ou a qualquer outro quando somos HUMANOS! E como tal, como um ser humano, tenho indignação de viver em uma sociedade preconceituosa como a nossa!

BASTA!

(P.S.: por favor, torne público este depoimento! Consentimento pleno autorizado!)
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Cesar Pereira

terça-feira, 28 de junho de 2011

Sentença Judicial: primeiro casamento entre pessoas do mesmo sexo

O juiz Fernando Henrique Pinto decidiu ontem. Hoje foi realizado o casamento. Agora, Luiz André e Sérgio já tem certidão de casamento e, conseqüentemente, a averbação da certidão de nascimento.

Ainda que, na prática, a troca de sobrenomes entre os casais traga bastante trabalho, a troca troca entre eles carrega consigo muitos significados. Entre eles posso destacar:

1) troca mútua permitiu sair daquele antiquado e errôneo pensamento do "quem é a mulher da relação?". A começar porque há alguns anos apenas a mulher mudava o nome, tornando-se a Srª Fulana De Tal. A terminar porque se nos casais de mesmo sexo sempre tivesse "o homem" e "a mulher", não seriam um casal homossexual, né?

2) marca decididamente o dia de hoje, como sendo um dia de luta por igualdade, inclusive a igualdade de optar por incluir ou não outro sobrenome, como os demais casais já podem fazer.

Ao casal, felicidades, e muita garra para tantas outras batalhas que ainda estão por vir, na vida privada ou na vida pública.

Abaixo, a Sentença Judicial, NA ÍNTEGRA!

A foto deste post "roubei" do blog de Luiz André, que você pode ver AQUI.
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Vistos.

LUIZ ANDRÉ DE REZENDE MORESI e JOSÉ SÉRGIO SANTOS DE SOUSA, ambos do sexo masculino, demais qualificações nos autos, protocolaram pedido de conversão de união estável em casamento.

Instruíram o pedido com escritura pública lavrada em 17/05/2011, perante o 1º Tabelião de Notas e de Protestos de Letras e Títulos de Jacareí/SP (livro nº.705, fls. 017), onde declararam viver em união estável há 8 (oito) anos.

Foi publicado edital e cumpridas todas as formalidades legas para habilitação a casamento, não havendo impugnações.

O pedido foi instruído com declaração de duas testemunhas, no sentido de que os requerentes "mantém convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".

O Ministério Público ofertou parecer favorável ao pedido.

É o relatório do necessário. Fundamento e decido.

Preliminarmente, observa-se que, conforme pedido expresso dos autores, os mesmos pretendem a conversão de alegada união estável em casamento, como permite e prevê o art. 226, § 3°, parte final, da Constituição Federal, e o art. 1.726 do Código Civil.

Regulamentando tais dispositivos constitucionais e legais, a Corregedoria Geral da justiça de São Paulo, em suas Normas de Serviço (Tomo II, Capítulo XVII, Seção V, Subseção IV, art. 135), assim disciplinou o procedimento de conversão da união estável em casamento:

"87. A conversão da união estável em casamento deverá ser requerida pelos conviventes perante o Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais de seu domicílio. (Nota 2: Provo CGJ 25/2005).

87.1. Recebido o requerimento, será iniciado o processo de habilitação previsto nos itens 52 a 74 deste capítulo, devendo constar dos editais que se trata de conversão de união estável em casamento. (Nota 3: Provo CGJ 25/2005).

87.2. Decorrido o prazo legal do edital, os autos serão encaminhados ao Juiz Corregedor Permanente, salvo se este houver editado portaria nos moldes previstos no item 66 supra. (Nota 4: Provs. CGJ 25/2005 e 14/2006).

87.3. Estando em termos o pedido, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de qualquer solenidade, prescindindo o ato da celebração do matrimônio. (Nota 5: Provs. CGJ 25/2005 e 14/2006).

87.4. O assento da conversão da união estável em casamento será lavrado no Livro "B", exarando-se o determinado no item 81 deste Capítulo, sem a indicação da data da celebração, do nome e assinatura do presidente do ato, dos conviventes e das testemunhas, cujos espaços próprios deverão ser inutilizados, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento. (Nota 5: Provo CGJ 25/2005).

BLOCO DE ATUALIZAÇÃO N° 28 - CAP. XVII - 31

87.5. A conversão da união estável dependerá da superação dos impedimentos legais para o casamento, sujeitando-se à adoção do regime matrimonial de bens, na forma e segundo os preceitos da lei civil. (Nota 1: Provo CGJ 25/2005).

87.6. Não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável, em nenhuma hipótese, a data do início, período ou duração desta. (Nota 2: Provo CGJ 25/2005)".

Resumindo-se, verifica-se que o casamento civil tradicional difere do casamento por conversão de união estável apenas pela substituição do ato solene da celebração, presidido pelo ''juiz de paz", pela homologação, realizada pelo Juiz de Direito responsável pela Corregedoria Permanente do Registro Civil das Pessoas Naturais da comarca.

No mérito, cumpridas todas as formalidades legais, a questão que se coloca para análise é a possibilidade ou não de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, o que se passa a apreciar.

O maior e mais repetido princípio da Constituição da República Federativa do Brasil é o da igualdade.

A mesma constituição elegeu a "dignidade da pessoa humana" como um de seus "fundamentos" (art. 1°, inciso 111), e declarou que o Brasil tem como "objetivos fundamentais" a construção de "uma sociedade livre, justa e solidária", bem como ''promover o bem de todos, SEM PRECONCEITOS de origem, raça, SEXO, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (art. 3°, incisos I e IV).

Também determina a Constituição Federal que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" e que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição" (art. 5°, inciso I).

Mais à frente, no Título "Da Ordem Social", a Lei Maior afirma que "a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado" (art. 226, caput).

Sobre o casamento, a Constituição Federal dispõe que o mesmo "é civil e gratuita a celebração" (art. 226, §1°), acrescentando que "o casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei" (art. 226, § 1°), e que o casamento ''pode ser dissolvido pelo divórcio" (art. 226, § 6°, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 66, de 13/07/2010).

A Constituição Federal também declara que ''para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável (...) como entidade familiar. DEVENDO A LEI FACILITAR SUA CONVERSÃO EM CASAMENTO", e que "entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes" (art. 226, §§ 3° e 4°).

Em harmonia com o princípio da igualdade, nossa Lei Maior enfatiza que "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher" (art. 226, § 5°).

Aqui cabe abrir parêntesis para alertar que tal dispositivo não necessariamente declara que casamento existe apenas entre homem e mulher, até porque "sociedade conjugal' não é "casamento", sendo certo que a primeira sempre pôde ser dissolvida pela separação" (de jato, judicial e mais recentemente também extrajudicial), e o segundo somente é dissolvido pelo "divórcio".

Contudo, aparentemente rompendo todo esse contexto de ênfase no princípio da igualdade, a Constituição da República Federativa do Brasil, ao mencionar a união estável em seu art. 226, § 3°, assim se pronunciou: "é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar" (art. 226, § 3°).

Mais de duas décadas passadas desde 05/1 0/1988, quando foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, e já se ingressando na segunda década do Século XXI, é público e notório que milhares de pessoas do mesmo sexo (homens e homens; mulheres e mulheres), compartilham a vida juntos como se casados fossem.

A ausência de respaldo jurídico a tal realidade social causou inúmeros prejuízos e injustiças, desde o não reconhecimento do direito à sucessão, passando pela ausência da presunção legal de esforço comum no patrimônio constituído, até a ausência de direitos sociais, como a pensão previdenciária por morte.

Nesse contexto, tramitava perante o Supremo Tribunal Federal a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental- ADPF n°. 178 (conhecida como a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI n°. 4277), ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, objetivando a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Pedia-se, também, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Também estava em trâmite a ADPF n°. 132, onde o Estado do Rio de Janeiro alegava que o não reconhecimento da união homoafetiva contrariava preceitos fundamentais como igualdade, liberdade (da qual decorre a autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa humana, todos da Constituição Federal, e pediu que o STF aplicasse o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil, às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de Janeiro.

Foi nesse contexto que no dia 05 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento de tais ações, tendo como relator o Exmo. Ministro Ayres Britto, reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo, dando interpretação conforme a Constituição Federal, para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar.

Na ocasião, o Exmo. Ministro Ayres Britto foi seguido pelos Exmos. Ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, bem como Exma Ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie - decorrendo votação unânime dos presentes.

Tal julgamento, nos termos do art. 102, § 2°, da Constituição Federal, possui "eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”.

No caso concreto, aplica-se a conhecida fórmula jurídica romana, segundo a qual "onde há a mesma razão. aplica-se o mesmo direito" ("ubi eadem ratio, ibi eadem jus"). Desta forma, os fundamentos de tal julgamento, ainda que sem o dito efeito vinculante, certamente são aplicáveis ao instituto de direito civil denominado casamento, inclusive ao mencionado art. 226, § 5°, da Constituição Federal - o que apenas não foi declarado no mencionado precedente histórico do STF, provavelmente porque não era objeto dos pedidos das ações em análise.

Os prováveis entraves a tal entendimento podem advir de discriminação e/ou de convicções religiosas.

Mas o Estado Brasileiro, do qual o Judiciário é um dos Poderes, repudia constitucionalmente a discriminação e é laico, ou seja, não vinculado a qualquer religião ou organização religiosa.

É bom e necessário que assim seja, pois alguns dogmas ou orientações religiosas muitas vezes se chocam com princípios e garantias da Constituição da República Federativa do Brasil.

A discriminação (ou preconceito) contra homossexuais decorre normalmente de equívoco sobre a origem "psíquica" do homossexualismo, e de dogmas ou orientações religiosas.

O equívoco de origem "psíquica" é a crença que o homossexualismo e suas variantes (transexualismo etc.) ou a união homoafetiva constituem simples opção sexual.

Tal premissa parece equivocada, porque o fenômeno pelo qual um homem ou uma mulher se sente atraído(a) por pessoa do mesmo sexo, a ponto às vezes de repudiar contato íntimo com pessoa do sexo oposto, não se mostra como uma opção. Tudo indica tratar-se de uma característica individual de determinados seres humanos, tão independente da vontade quanto a cor do cabelo, da pele, o caráter, as aptidões etc.

De fato, se no mundo ainda vige forte preconceito contra tais pessoas, e se as mesmas têm de passar por sofrimentos internos, familiares e sociais para se reconhecerem para elas próprias e publicamente com homossexuais - às vezes pagando com a própria vida -, parece que, se pudessem escolher, optariam pela conduta socialmente mais aceita e tida como “normal”.

O dogma ou orientação religiosa que de forma mais marcante se opõe ao casamento entre pessoas do mesmo sexo é a colocação da relação sexual procriadora como principal elemento ou requisito essencial do casamento.

Ocorre que o motivo maior de uma união humana é - ou deveria ser – o Amor, até porque este é pregado pela maioria das religiões, principalmente as cristãs, como o valor e a virtude máxima e fundamental.

Fosse de outra forma, muitas religiões não poderiam aprovar casamentos entre pessoas de sexos opostos que não podem ter filhos. E se assim agem, parecem afrontar a Lei Cristã do Amor, e prejudicam a formação da entidade familiar ou família, que é a base da sociedade.

Por outro enfoque, muitos se preocupam com o potencial envolvimento de crianças ou adolescentes na entidade familiar formada por pessoas do mesmo sexo. Mas, se esquecem que a falta de planejamento familiar, da qual decorre a geração de crianças sem condições mínimas de sustento e educação, bem como atos abomináveis, como, por exemplo, a remessa de recém nascidos em latas de lixo ou o assassinato dos próprios filhos, são diariamente protagonizados por "casais" de sexos opostos ditos "normais" e/ou por pessoas heterossexuais.

O Brasil, entre outras conhecidas mazelas, é palco da falência da segurança pública, das fronteiras sem controle, da disseminação descontrolada das drogas, da endêmica corrupção, e possui a maior carga tributária, a pior distribuição dos tributos arrecadados e o trânsito que mais mata do planeta Terra.

Assim, pode-se afirmar que no Brasil há situações de fato e de direito muito mais graves para se preocupar, que com a vida de dois seres humanos desejosos de paz e felicidade ao seu modo, sem infringir direitos de ninguém.

Finalmente, cabe anotar que no último dia 17 de junho de 2011, o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução histórica destinada a promover a igualdade dos seres humanos, sem distinção de orientação sexual. A resolução, que teve aprovação do Brasil, embora sem ações afirmativas, dispõe que "todos os seres humanos nascem livres e iguais no que diz respeito a sua dignidade e cada um pode se beneficiar do conjunto de direitos e liberdades sem nenhuma distinção".

Por todo o exposto, HOMOLOGO a disposição de vontades declarada pelos requerentes do presente procedimento, para CONVERTER em CASAMENTO, pelo regime escolhido da comunhão parcial de bens, a união estável dos mesmos - os quais, por força deste casamento, passam a se chamar respectivamente "LUIZ ANDRÉ REZENDE SOUSA MORESI" e "JOSÉ SÉRGIO SOUSA MORESI".

Tratando-se esta sentença de ato judicial que substitui a celebração, a mesma tem efeitos imediatos. Assim, lavre-se o registro de casamento e providencie-se o necessário às averbações nos registros dos nascimentos das partes.

No mais, nada sendo requerido em 30 (trinta) dias, arquivem-se os autos.

P.R.I. Ciência ao Ministério Público.

Jacareí/SP,27 e junho de 2011.

Fernando Henrique Pinto

Juiz de Direito

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Conselho Federal de Psicologia permite uso de nome social


Diário Oficial REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

Imprensa Nacional BRASÍLIA - DF

Nº 120 – 24/06/11 – Seção 1 p. 205

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA

Resolução Nº- 14/2011

Dispõe sobre a inclusão do nome social no campo "observação" da Carteira de Identidade Profissional do Psicólogo e dá outras providências.

O CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, no uso de suas atribuições legais e regimentais, que lhe são conferidas pela Lei n° 5.766, de 20/12/1971;

CONSIDERANDO o direito à cidadania e o princípio da dignidade da pessoa humana, previstos no artigo 1º, incisos I e III da Constituição Federal de 1988;CONSIDERANDO o direito à igualdade de todos os cidadãos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, previsto no artigo 5º da Constituição Federal de 1988;

CONSIDERANDO o disposto na Lei n.º 6.206/75, a qual dá valor de documento de identidade às carteiras expedidas pelos órgãos fiscalizadores de exercício profissional;

CONSIDERANDO que nos termos do artigo 14 da Lei n.º 5.766/71 e do artigo 47 do Decreto n.º 79.822/77 e artigo 47 da Resolução CFP n.º 003/2007, o documento de identificação do psicólogo é a Carteira de Identidade Profissional;

CONSIDERANDO que o artigo 47 do Decreto n.º 79.822/77 estabelece que, deferida a inscrição, será fornecida ao Psicólogo a Carteira de Identidade Profissional, na qual serão feitas anotações relativas à atividade do portador, e

CONSIDERANDO decisão do Plenário do Conselho Federal de Psicologia do dia 17 de junho de 2011,

resolve:

Art. 1º - Assegurar às pessoas transexuais e travestis o direito à escolha de tratamento nominal a ser inserido no campo "observação" da Carteira de Identidade Profissional do Psicólogo, por meio da indicação do nome social.

Art. 2º - A pessoa interessada solicitará, por escrito, ao Conselho Regional de Psicologia, a inclusão do prenome que corresponda à forma pela qual se reconheça e é identificada, reconhecida e denominada por sua comunidade e em sua inserção social.

Art. 3º - Fica permitida a assinatura nos documentos resultantes do trabalho da(o) psicóloga(o) ou nos instrumentos de sua divulgação o uso do nome social, juntamente com o nome e o número de registro do profissional.

Art. 4º - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.


HUMBERTO COTA VERONA

Conselheiro - Presidente


Fonte: ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftpsessp/bibliote/informe_eletronico/2011/iels.jun.11/Iels118/U_RS-CFP-14_200611.pdf

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Delicadeza (Joyce)

Pra quem assistiu o debate "Eros e Psique", que compôs o ciclo de debates do Mês LGBT este ano, organizado pela APOGLBT-SP e CRP-SP, sabe um pouco mais sobre essa música.

Como eu disse, naquele momento, eu tenho um gosto meio antigo e a conversa desta noite me trouxe essa música na memória. A parte que eu não contei (nem cantei), foi que a música já "me disse" e que hoje guardo com carinho em meu baú de recordações.



Delicadeza (Joyce Moreno)

Discreta em companhia de gente esquisita
Maldita em ambiente de gente normal
Plantando coisas belas num circo de horrores
Com flores e bombons no juízo final

Pintando aquarelas em terra de cego
Com pregos, paus e pedras e más intenções
Se por delicadeza eu oculto o meu ego
Me nego a ser princesa num reino de anões

Bordando sutilezas e finas malícias
Delícias num país que não tem paladar
O coração partido de tanta falácia
Que passa e a gente nem pode se desviar

Sonhando ainda um tempo menos suicida
Que diga pra que veio e que possa provar
Se por delicadeza eu perder minha vida
Saí mesmo à francesa, queira desculpar
.

Pra saber mais de Joyce, acesse: http://www.joycemoreno.com/

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Vídeos do Kit Anti-Homofobia


Pra quem ainda não viu os vídeos "absurdos" do chamado "kit-gay", eis uma oportunidade.

Ainda estou procurando algo de verdadeiramente inadequado. A gente sempre acha uma ou outra coisinha que poderia estar melhor, mas convenhamos que são preciosismos. Coisa que bastaria a presidenta falar ao MEC: "_Por favor, dê uma ajustadinha aqui!". Muito diferente que suspender o material (e jogar na vala o trabalho de toda uma equipe responsável e articulada).

Se o material fosse um perigo social, o CFP- Conselho Federal de Psicologia não teria sido FAVORÁVEL a seu conteúdo (para ler o parecer do Conselho, clique AQUI). Fazer psicologia de botiquim e dizer o que vier na cabeça em nome dela, todo mundo pode. Agora, consultar as fontes, como a que citei, por exemplo, seria um bom começo.

Também queria saber onde tem "propaganda de opção sexual", como diria a Presidenta Dilma. Encontrei foi material para que as pessoas vivam bem consigo mesmas, apesar de ter sua sexualidade abominada pela sociedade.

Inclusive, ter novelas, filmes, propagandas de tv, cartilha na escola, revistas femininas, jornais de toda ordem apresentando, quase que na totalidade, apenas a realidade de casais heterossexuais, não seria "propaganda de opção sexual"? E dar direito civil pleno a apenas esses casais, como poderíamos chamar isso?

Já sobre os tais "costumes" sociais... Isso vale também para o nosso "costume" de espancar criança, matar mulheres, pagar menos a pessoas negras, jogar nossos jovens na cadeia, roubar dos cofres públicos?

Abaixo os vídeos da campanha e mais dois, de brinde.

VÍDEOS ESCOLA SEM HOMOFOBIA

Torpedo




Encontrando Bianca




Probabilidade




OUTROS VÍDEOS:

Suicídio de Garoto Gay




Propaganda anti bullying

domingo, 22 de maio de 2011

A Margarida Enlatada (Caio Fernando Abreu)


Tem um conto de Caio Fernando Abreu, que fala de margaridas (enlatadas)...
Uma referência à moda, coisas descartáveis, passageiras, da sociedade de consumo...
Enfim, aquela margarida vista no vídeo Oração (Banda Mais Bonita da Cidade) é o avesso desta.

Deixo vocês com o conto.
O coração, amando.


A MARGARIDA ENLATADA (Caio Fernando Abreu)

I

Foi de repente. Nesse de repente, ele ia indo pelo meio do aterro quando viu um canteiro de margaridas. Margarida era um negócio comum: ele via sempre margaridas quando ia para sua indústria, todas as manhãs. Margaridas não o comoviam, porque não o comoviam levezas. Mas exatamente de repente, ele mandou o chofer estacionar e ficou um pouco irritado com a confusão de carros às suas costas. O motorista precisou parar um pouco adiante, e ele teve que caminhar um bom pedaço de asfalto para chegar perto do canteiro. Estavam ali, independentes dele ou de qualquer outra pessoa que gostasse ou não delas: aquelas coisas vagamente redondas, de pétalas compridas e brancas agrupadas em torno dum centro amarelo, granuloso. Margaridas. Apanhou uma e colocou-a no bolso do paletó.
Diga-se em seu favor que, até esse momento, não premeditara absolutamente nada. Levou a margarida no bolso, esqueceu dela, subiu pelo elevador, cumprimentou as secretárias, trancou-se em sua sala. Como todos os dias, tentou fazer todas as coisas que todos os dias fazia. Não conseguiu. Tomou café, acendeu dois cigarros, esqueceu um no cinzeiro do lado direito, outro no cinzeiro do lado esquerdo, acendeu um terceiro, despediu três funcionários e passou uma descompostura na secretária. Foi só ao meio-dia que lembrou da margarida, no bolso do paletó. Estava meio informe e desfolhada, mas era ainda uma margarida. Sem saber exatamente por que, ficou pensando em algumas notícias que havia lido dias antes: o índice de suicídios nos países superdesenvolvidos, o asfalto invadindo as áreas verdes, a solidão, a dor, a poluição, a loucura e aquelas coisas sujas, perigosas e coloridas a que chamavam jovens. De repente, a luz. Brotou. Deu um grito:
—É isso!
Chamou imediatamente um dos redatores para bolar um slogan e esqueceu de almoçar e telefonou para suas plantações e mandou que preparassem a terra para novo plantio e ordenou a um de seus braços-direitos que comprasse todos os pacotes de sementes encontráveis no mercado depois achou melhor importá-las dos mais variados tamanhos cores e feitios depois voltou atrás e achou melhor especializar-se justamente na mais banal de todas aquela vagamente redonda de pétalas brancas e miolo granuloso e conseguiu organizar em poucos minutos toda uma equipe altamente especializada e contratou novos funcionários e demitiu outros e precisou tomar uma bolinha para suportar o tempo todo o tempo todo tinha consciência da importância do jogo exaustou afundou noite adentro sem atender aos telefonemas da mulher ao lado da equipe batalhando não podia perder tempo quase à meia-noite tudo estava resolvido e a campanha seria lançada no dia seguinte não podia perder tempo comprou duas ou três gráficas para imprimir os cartazes e mandou as fábricas de latas acelerar sua produção precisava de milhões de unidades dentro de quinze dias prazo máximo porque não podia perder tempo e tudo pronto voltou pelo meio do aterro as margaridas fantasmagóricas reluzindo em branco entre o verde do aterro a cabeça quase estourando de prazer e a sensação nítida clara definida de não ter perdido tempo. Dormiu.

II

No dia seguinte, acordou mais cedo do que de costume e mandou o chofer rodar pela cidade. Os cartazes. As ruas cheias de cartazes, as pessoas meio espantadas, desceu, misturou-se com o povo, ouviu os comentários, olhou, olhou. Os cartazes. O fundo negro com uma margarida branca, redonda e amarela, destacada, nítida. Na parte inferior, o slogan:

Ponha uma margarida na sua fossa.

Sorriu. Ninguém entendia direito. Dúvidas. Suposições: um filme underground, uma campanha antitóxicos, um livro de denúncia. Ninguém entendia direito. Mas ele e sua equipe sabiam. Os jornais e revistas das duas semanas seguintes traziam textos, fotos, chamadas:

O índice de poluição dos rios é alarmante.
Não entre nessa.
Ponha uma margarida na sua fossa.

Ou

O asfalto ameaça o homem e as flores.
Cuidado.
Use uma margarida na sua fossa.

Ou

A alegria não é difícil.
Fique atento no seu canto.
Basta uma margarida na sua fossa.

Jingles. Programas de televisão. Horário nobre. Ibope. Procura desvairada de margaridas pelas praças e jardins. Não eram encontradas. Tinham desaparecido misteriosamente dos parques, lojas de flores, jardins particulares. Todos queriam margaridas. E não havia margaridas. As fossas aumentaram consideravelmente. O índice de alcoolismo subiu. A procura de drogas também. As chamadas continuavam.

O índice de suicídios no país aumentou em 50%.
Mantenha distância.
Há uma margarida na porta principal.

Contratos. Compositores. Cibernéticos. Informáticos. Escritores. Artistas plásticos. Comunicadores de massa. Cineastas. Rios de dinheiro corriam pelas folhas de pagamento. Ele sorria. Indo ou vindo pelo meio do aterro, mandava o motorista ligar o rádio e ficava ouvindo notícias sobre o surto de margaridite que assolava o país. Todos continuavam sem entender nada. Mas quinze dias depois: a explosão.
As prateleiras dos supermercados amanheceram repletas do novo produto. As pessoas faziam filas na caixa, nas portas, nas ruas. Compravam, compravam. As aulas foram suspensas. As repartições fecharam. O comércio fechou. Apenas os supermercados funcionavam sem parar. Consumiam. Consumavam. O novo produto:
margaridas cuidadosamente acondicionadas em latas, delicadas latas acrílicas. Margaridas gordas, saudáveis, coradas em sua profunda palidez. Mil utilidades: decoração, alimentação, vestuário, erotismo. Sucesso absoluto. Ele sorria. A barriga aumentava. Indo e vindo pelo aterro, mergulhado em verde, manhã e noite — ele sorria. Sociólogos do mundo inteiro vieram examinar de perto o fenômeno. Líderes feministas. Teóricos marxistas. Porcos chauvinistas. Artistas arrivistas. Milionários em férias. A margarida nacional foi aclamada como a melhor do mundo: mais uma vez a Europa se curvou ante o Brasil.
Em seguida começaram as negociações para exportação: a indústria expandiu-se de maneira incrível. Todos queriam trabalhar com margaridas enlatadas. Ele pontificava. Desquitou-se da mulher para ter casos rumorosos com atrizes em evidência. Conferências. Debates. Entrevistas. Tornou-se uma espécie de guru tropical. Comentava-se em rodinhas esotéricas que seus guias seriam remotos mercadores fenícios. Ele havia tornado feliz o seu país. Ele se sentia bom e útil e declarou uma vez na televisão que se julgava um homem realizado por poder dar amor aos outros. Declarou textualmente que o amor era o seu país. Comentou-se que estaria na sexta ou sétima grandeza. Místicos célebres escreviam ensaios onde o chamavam de mutante, iniciado, profeta da Era de Aquarius. Ele sorria. Indo e vindo. Até que um dia, abrindo uma revista, viu o anúncio:

Margarida já era, amizade.
Saca esta transa:
O barato é avenca.

III

Não demorou muito para que tudo desmoronasse. A margarida foi desmoralizada. Tripudiada. Desprestigiada. Não houve grandes problemas. Para ele, pelo menos. Mesmo os empregados, tiveram apenas o trabalho de mudar de firma, passando-se para a concorrente. O quente era a avenca. Ele já havia assegurado o seu futuro — comprara sítios, apartamentos, fazendas, tinha gordos depósitos bancários na Suíça. Arrasou com napalm as plantações deficitárias e precisou liquidar todo o estoque do produto a preços baixíssimos. Como ninguém comprasse, retirou-o de circulação e incinerou-o.
Só depois da incineração total é que lembrou que havia comprado todas as sementes de todas as margaridas. E que margarida era uma flor extinta. Foi no mesmo dia que pegou a mania de caminhar a pé pelo aterro, as mãos cruzadas atrás, rugas na testa. Uma manhã, bem de repente, uma manhã bem cedo, tão de repente quanto aquela outra, divisou um vulto em meio ao verde. O vulto veio se aproximando. Quando chegou bem perto, ele reconheceu sua ex-esposa.
Ele perguntou:
– Procura margaridas?
Ela respondeu:
– Já era.
Ele perguntou:
– Avencas?
Ela respondeu:
– Falou.
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Imagem via google, faz tempo...

Oração e Margarida

Sobre a música "Oração", da Banda Mais Bonita da Cidade.

Orações não são coisas que costumo ler, ver, praticar. Geralmente estão ligadas a coisas religiosas, artigos que não tenho muito interesse.
Interesso-me por outro tipo de oração. Aquelas que em poesia, imagem ou som, falam ao meu coração. Essas orações, que geralmente não levam esse nome, são sempre bem-vindas.
Uma Oração, nome próprio, veio por uma amiga. Depois de uma semana de tristezas e decepções com o amor que chamam "divino".
Chorei horrores.
Veio assim, na forma de amor "terreno", desses que acreditam na comunicação entre as criaturas. Esse sentimento de fraternidade, sereno, confiável, é oração e abrigo em si.

Aqui, pras criaturas que amo.
Também para as que quero bem (mesmo aquelas com as quais não tenho - ainda?- muita "hora-atividade")
Afinal "coração não é tão simples quanto pensa, nele cabe o que não cabe na dispensa" (...)





Na delicada direção do clip (a poesia da imagem, se aliando a das palavras e som) reparei uma margarida no bolso do rapaz. Flor que logo depois ele dá pra uma moça, que joga pra cima e voltamos à bagunça da celebração conjunta...

Tem um conto de Caio Fernando Abreu, que ele fala das margaridas (enlatadas)... Uma referência à moda, coisas descartáveis, passageiras e da sociedade de consumo... Enfim, aquela margarida do vídeo é o avesso dessa do conto.

Para quem quiser ler o conto, clique AQUI.
Sigo, e o coração vai amando.
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quarta-feira, 18 de maio de 2011

Cordel d'A Greve em Diadema


Hoje entramos no 20º dia de greve na prefeitura de Diadema.
O prefeito aqui talvez não se lembre que é do PT - Partido dos Trabalhadores, de forma que não quer repor as perdas que tivemos com a inflação... Parece que para ele "trabalhador" é só o alheio, não vale para "os dele", sei lá.

Seja como for fica alardeando pela cidade, gastando inclusive dinheiro da prefeitura na gráfica (papel super bom e impressão em várias cores) pra dizer para a população que ofereceu 10% prxs funcionárixs e não quisemos. Só esqueceu de dizer que isso começava com 2% em DEZEMBRO DE 2011 e ia pingando 2% até SETEMBRO DE 2012...

Vai ver que essa fortuna que a prefeitura gastará conosco só não levará os cofres públicos à falência devido à profecia de que o mundo acabará em dezembro de 2012. Assim só desfrutaremos da reposição total (que nos fará inclusive esquecer da inflação de 2011, que aqui nem está sendo computada) por dois longos meses.

Podia contar aqui muitas coisas mentirosas que ele anda dizendo, da pressão injusta que anda fazendo, mas pra quê? Ele não vale a pena.

Ainda bem que tem poesia nisso tudo. O povo aqui endurece mas não perde a ternura, como dizia Che.
Trago para cá o cordel de Nando Poeta, que na expressão popular conta de nossa luta com bravura e sensibilidade. Tivemos a honra de ouvir essa tarde, no plenário da Câmara dos Vereadores de Diadema, que ocupamos desde o dia 12 de maio.

Antes de me despedir, preciso dizer duas coisas:
1) Nando Poeta, obrigada!
2) A greve continua. Reali, a culpa é sua!

A Greve de Diadema
Por Nando Poeta


O Prefeito não respeita
Servidor de Diadema.
Se nega atender direitos
Fazendo grande blasfema.
A greve surgiu com força
Para acabar com dilema.

Já são mais de vinte dias
Que estamos paralisados.
A categoria unida
Buscando seus resultados.
Um aumento que traduza
Salários serem aumentados.

A greve é a fortaleza
De quem vive da labuta.
É união e a força
Para vencer essa luta.
Contra a forte intransigência
Do Prefeito, absoluta.

Em cada dia que passa
A greve fica mais forte.
A saúde e a educação
Tem dado grande suporte.
Unir as secretarias
Esse é o grande norte.

Queremos cortar o vinculo
Com SP alimentos
Que serve a sua ração
Deixando bucho em tormentos
E na máfia da merenda
Recebe um dos acentos.

Prefeito Má-rio Re-a-li
A culpa é toda sua.
Por não atender a luta
Essa greve continua.
O servidor trabalhando
Expediente na rua.

Prefeito na contra mão
Pra greve fecha o sinal.
Proíbe a turma do transito
Conosco ser cordial,
Mas o comando de greve
Tem o CET pessoal.

A turma que negocia
A mando da prefeitura.
Fatinha, Adelaide, Airton
Ninguém hoje mais atura.
Garavelo e “O”misso
Faz do servidor fritura.

Quando vai negociar
Eles pedem mais um tempo.
Diz sempre faltar recursos
Num discurso bem destempo.
Falando que nossa greve
Ela é um contratempo.

O nosso movimento
Diz: basta de enrolação.
Queremos que o salário
Enfrente a inflação.
Por isso que o aumento
É saída, é solução.

São todas secretarias
A frente do movimento.
Exigindo do prefeito
O nosso justo aumento.
Servidor valorizado
Esse é o grande intento.

O movimento grevista
Mostra garra e unidade.
Seguindo a trilha da luta
Tem apoio da cidade,
Sempre berço de batalhas
Vencendo a barbaridade.

Blog do poeta Nando: http://tributoaocordel.blogspot.com/