domingo, 9 de setembro de 2012

Marcha das Vadias - Baixada Santista (TEXTO)




 






Publicando aqui o texto.
Ele fala de tudo um pouco:
Do histórico...
Do porquê deste nome...
De feminismo...
De machismo...
De homofobia...
De otras cositas más...
 
1ª Marcha das Vadias -
Baixada Santista
  “Isso não é sobre sexo,
é sobre violência”.
 
A “Marcha das Vadias” (em inglês, Slutwalk) teve início em Toronto, no Canadá, em reação ao discurso de um policial que, em uma palestra sobre segurança na Faculdade de Direito Osgoode Hall Law School, disse que as mulheres deveriam evitar “se vestir como vagabundas” para que não fossem vítimas de violência sexual. A declaração gerou uma onda de revolta, que culminou na primeira Marcha das Vadias, ocorrida em Toronto em 24 de Janeiro de 2011. De lá, o movimento rapidamente se espalhou por todo o mundo, com Marchas em lugares tão diferentes entre si quanto Austrália e Índia. No Brasil, tudo começou com a Marcha das Vadias de São Paulo, também em 2011. Em 2012, várias cidades pelo Brasil inteiro também organizaram suas Marchas, e outras estão se organizando para marcharem. As cidades da Baixada Santista estão entre elas.

A ideia da série de manifestações carregar o nome “Marcha das Vadias” vem como referência ao discurso machista do policial e, através do título e dos questionamentos comuns a todas as versões da Marcha, é demonstrado que entendemos a violência sexual como algo do qual a vítima nunca é culpada, e alegar que uma mulher “provocou”, de alguma forma, a agressão da qual foi vítima, é não só irracional, como cruel.

A Marcha é um movimento apartidário que luta contra as agressões físicas, psicológicas, sociais e morais às quais mulheres e meninas são submetidas todos os dias.

Lutamos contra a ideia de que nossas autoestimas devam ser e estar orientadas à concepção de o quanto somos consideradas “desejáveis” para algo ou alguém. Tal concepção gera pressão para que nos enquadremos em um padrão de beleza massificador, excludente, racista e elitista, que contribui para o surgimento e exacerbação de distúrbios alimentares, o uso indiscriminado de produtos que prometem beleza e emagrecimento, e outras manifestações de vergonha e rejeição ao próprio corpo. Não somos todas brancas, loiras, magras, com seios grandes, cinturas finas, bundas grandes e sem um grama de gordura ou flacidez em nossos corpos. Somos mulheres, somos muitas e somos de todos os jeitos.

Lutamos contra um sistema que ensina que “homens de verdade” não veem as mulheres como suas companheiras, e sim como objetos sexuais. Lutamos contra um sistema que ensina que não se pode ser “homem” sem sentir atração sexual por mulheres, e que relega homens não-heterossexuais à categoria de “mulherzinha”, como se “ser mulher” fosse uma coisa negativa e se assemelhar em algo a características pré-definidas como femininas fosse algo ofensivo. Lutamos contra um sistema que, desde cedo, também pressiona meninos e homens a sufocarem suas emoções e a vigiarem o comportamento (próprio e alheio); reprimindo qualquer manifestação que não se enquadre em um conceito restrito e excludente de “masculinidade”.

Lutamos contra a mercantilização do corpo feminino, transformado em mero chamariz para vender produtos - de cerveja a desodorante. Lutamos contra mulheres usadas como decoração em programas de TV, feiras de venda de produtos, outdoors e similares. Lutamos contra uma cultura que trata mulheres como objetos, e nossos corpos como mercadoria, quando deveria nos enxergar como seres humanos, com opiniões, projetos de vida, sentimentos, desejos e direitos próprios.

Lutamos contra a violência sofrida pelas travestis e mulheres trans*, consideradas menos dignas de respeito e dignidade por expressarem sua identidade feminina, expomos também que a nossa luta engloba toda e qualquer descriminação por ordem de gênero, incluso a acometida aos homens trans*, que assim como as mulheres são julgados e considerados indignos de assumirem o gênero com o qual se identificam. Lutamos contra a violência institucional perpetrada pelo Estado e por profissionais da saúde que se outorgam o direito de decidir com base em noções machistas e excludentes o que é ser mulher e o que é ser homem “de verdade”, como se a “verdade” fosse uma entidade inquestionável.

Lutamos contra uma cultura que culpa as mulheres pelas violências que sofrem, e prega a violência ao feminino como algo natural, ao demonstrar misoginia na linguagem cotidiana (Desd'a mulher "vadia/puta/vagabunda/piranha/biscate", que ao ser verbalmente agredida, é tratada como ser sexual e tem por maior ofensa o que faz de seu próprio corpo, até o homem "filho da puta/corno/viado", que ou tem culpabilizadas as mulheres presentes em sua vida, novamente por conta da questão sexual - o problema não é ele, e sim a "mãe que deu pra vários" ou a "mulher que deu pra outro" - ou o fato de por alguma razão, se assemelhar em algo com uma mulher), ao tratar o estupro como piada em campanhas publicitárias e programas “humorísticos”, ou ao simplesmente pregar que a maneira como uma mulher se porta a designa o título de “estuprável”.

Queremos lembrar a todos e todas que, não importa o que uma mulher vista, como ela se comporte, com quantas pessoas faça sexo, qual é sua profissão ou orientação sexual: TODAS as mulheres, assim como todas as pessoas, têm direito a ter sua segurança e integridade física respeitadas. A culpa do estupro é do estuprador! A culpa da agressão é de quem bate e não de quem apanha!

POR QUE VADIA?

Nas palavras da Marcha das Vadias DF: “Já fomos chamadas de vadias porque usamos roupas curtas, já fomos chamadas de vadias porque transamosantes do casamento, já fomos chamadas de vadias por simplesmente dizer “não” a um homem, já fomos chamadas de vadias porque levantamos o tom de voz em uma discussão, já fomos chamadas de vadias porque andamos sozinhas à noite e fomos estupradas, já fomos chamadas de vadias porque ficamos bêbadas e sofremos estupro enquanto estávamos inconscientes, por um ou vários homens ao mesmo tempo, já fomos chamadas de vadias quando torturadas e curradas durante a Ditadura Militar. Já fomos e somos diariamente chamadas de vadias apenas porque somos MULHERES”


“Vadia” é um termo usado para ofender e menosprezar mulheres que ousam ter o controle da própria sexualidade, assim como são também chamados de “vadias” os homens não-heterossexuais, que ousam amar e viver de forma diferente da imposta pelo machismo corrente.

O termo também é usado para envergonhar estes homens e mulheres a respeito de como ou com quem fazem sexo, de como se vestem, como se maquiam, do quanto bebem, quais lugares frequentam, em quais horários estão nas ruas e quais companhias mantêm. A palavra “vadia” se vem sempre no feminino, para todas as pessoas, e serve não apenas para envergonhá-las como para assustá-las, já que ser uma “vadia”, na nossa sociedade, equivale a ser “estuprável”, a ter justificada qualquer violência contra si. Nós não temos medo de ser vadias, quando “ser vadia” representa sermos mulheres e homens, que enquanto donos de si, exigem o direito de sermos o que quisermos.

Recusamos as ofensas a nós endereçadas por ousarmos viver nossas vidas da forma como desejamos. Se ser livre é ser vadia, somos TODAS vadias!


CONVITE:

Convidamos você, militante ou interessado na causa, a se unir e auxiliar na organização, divulgação e participação da Marcha das Vadias da Baixada Santista, lembrando que o ato será APARTIDÁRIO e está marcado para 30 de setembro de 2012, às 13h na Praça da Independência em Santos – SP. Traga para nossa marcha as suas faixas me prol da defesa “das vadias”. E também seus amigos e amigas, seus filhos e filhas, seus pai, mãe, avó, tios e tias e, principalmente, sua vontade de transformar esse mundo em um lugar melhor para se viver.




segunda-feira, 11 de junho de 2012

Alê d'Ilê e a Música


Ouvindo Gil, tomei coragem para escrever sobre Alê d’Ilê. Compartilho a certeza de que o texto não será o suficiente para expressar tudo o que eu queria. Assumo o risco e, desde já, desculpo-me pelo pouco.

Diz a lenda que nosso personagem aprendeu a tocar violão por acaso. Menino franzino gostava mesmo era de jogar futebol. Mas um dia o tombo no campinho de terra fez seu peso cair sobre o magro braço. E o partiu. Tristeza para ele seu não correr atrás da bola. Restou o violão no período de recuperação. E o menino tomou gosto e cresceu na melodia e habilidade do instrumento. Sozinho se alegrou e aprendeu a arte que veio a dividir com tantos.

Alê d’Ilê hoje mora em Macapá- AP. Nascido em Porecatu- PR, fez o percurso inverso d’A Violeira, de Chico. A sina deste caprichoso e não nordestino, mais que ir pra um lugar, era fazer música e conviver com a língua francesa. Assim subiu o país, saindo de sua terra-sul, passando brevemente pelo centro-oeste, e finalmente se estabelecendo no norte. Mambembe, cigano...

 A cara amiga perdoou-lhe por não fazer uma visita quando veio ao sudeste. Nada de cartas ao portador. As notícias, no correio eletrônico chegaram, com canção anexada. Uma alegria foi sabê-lo musicando pelas bandas de lá. Outra alegria foi comprar seu CD em uma loja virtual e, ao visitar a terra-sul, receber uma versão autografada.

Faz tempo que não vejo Alê d’Ilê.  Mas o tempo em que estivemos na mesma cidade me acompanha, quer seja no sudeste daqui ou da África. Inclusive, uma peça de roupa que trouxe pra ele de Moçambique ainda está preguiçosamente guardada em meu armário. Talvez à espera de um endereço não eletrônico para ser enviada. Nem sei se o pedi. Aproveito e registro aqui a solicitação.

O que sei é que Alê vive vizinho de Dona Guiana, a francesa que o ajuda a treinar a língua que estudou em sua Faculdade de Letras. Francesa é caso antigo, que até já virou canção (1). Sei também que ele gravou em seu CD uma belíssima música instrumental chamada Justina (2), para uma outra Dona, essa muito mais importante do que a anteriormente citada. 

Às vezes, na viagem diária de volta pra casa, eu o ouço. Um dia, degustando o som me peguei chorando. Olhando pela janela do ônibus, a lua alta brilhava... Chorava porque  sabia que era a mesma que brilhava para as gentes lá de casa, as pessoas mais amadas, “a minha gente que me espera voltar” (3) com as notícias dessa “minha terra, mundo inteiro”.

No fim, a Estrada Companheira (4) contém um coração a mil que amadureceu, gestou e pariu letras e melodias que soam histórias tão pessoais e tão gerais. Contém um menino franzino e um músico; as escadarias de uma igreja e a fronteira de um país; as águas do rio Paranapanema e as do Araguari.

Gil, no aparelho de som, hoje cantava Palco, como em um show de 1997, em Bauru. E como os tempos são outros, escrevi este texto, que agora vira post para enviar Pela Internet.
  
Músicas de Alê d’Ilê citadas: (1) Voulez vous Dancer,  (2) Justina, (3) I’I Pororoca e (4) Estrada Companheira
Para ouvir: Myspace
Para Comprar o CD: Visite o site da Livraria Cultura. Clique AQUI
 
Músicas de referência: A Violeira, Caro Amigo e Mambembe (Chico Buarque)/ Palco, Corações a Mil e Pela Internet (Gilberto Gil)
Imagens: fotografia de Carllos Bozelli e ilustracao de Nicolas Simon

E.T: Desde aqui, mando-te “lembranças”, querido Preto, como diria o preto meu avô. Posso também parafrasear (?) Carl Sagan e dizer que: diante da vastidão do tempo e da imensidão do espaço, é uma honra dividir um planeta e uma época com você.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O Embondeiro Que Sonhava Pássaros

Sim, faz muito tempo que não publico nada. E esta não é necessariamente uma "volta". Seja como for, gostaria de compartilhar um conto de Mia Couto.

O texto abaixo era um rascunho dezembro de 2011, quando pacientemente digitei os trechos deste conto para vocês. Mas naquele dezembro, algo estava travando meu computador que, por fim, veio a "morrer". Assim, não voltei mais a isso. Até agora.


O Embondeiro Que Sonhava Pássaros

[Mia Couto, Cada Homem é uma Raça]

 Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada.

Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida. Talvez, por razão disso, ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássaros não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro.



Todas manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas. (...) _Mãe, olha o homem dos passarinheiros! 

E os meninos inundavam as ruas. As alegrias se intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças. O homem puxava de uma muska (1) e harmonicava sonâmbulas melodias. O mundo inteiro se fabulava. 

Por trás das cortinas, os colonos reprovavam aqueles abusos. Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos - aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que voltasse ao seu devido lugar. Contudo, os pássaros tão encantantes que são - insistiam os meninos. Os pais se agravavam: estava dito. 

Mas aquela ordem pouco seria desempenhada. Mais que todos, um menino desobedecia, dedicando-se ao misterioso passarinheiro. Era Tiago, criança sonhadeíra, sem outra habilidade senão perseguir fantasias. Despertava cedo, colava-se aos vidros, aguardando a chegada do vendedor. O homem despontava e Tiago descia a escada, trinta degraus em cinco saltos. Descalço, atravessava o bairro, desaparecendo junto com a mancha da passarada. O sol findava e o menino sem regressar. Em casa de Tiago se poliam as lástimas: 
_Descalço, como eles. 

O pai ambicionava o castigo. Só a brandura materna aliviava a chegada do miúdo, em plena noite. O pai reclamava nem que fosse esboço de explicação: 
_Foste a casa dele? Mas esse vagabundo tem casa? 

A residência dele era um embondeiro, o vago buraco do tronco. Tiago contava: aquela era uma árvore muito sagrada, Deus a plantara de cabeça para baixo. 
_Vejam só o que o preto anda a meter na cabeça desta criança. 

(...) 
Fosse por desdenho dos grandes ou por glória dos pequenos, a verdade é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi virando assunto no bairro do cimento. Sua presença foi enchendo durações, insuspeitos vazios. Conforme dele se comprava, as casas mais se repletavam de doces cantos. Aquela música se estranhava nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia àquela terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os residentes, estrangeirando-lhes? Ou culpado seria aquele negro, sacana, que se arrogava a existir, ignorante dos seus deveres de raça? O comerciante devia saber que seus passos descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com aquela desobediência, acusando o tempo. Sentiam ciúmes do passado, a arrumação das criaturas pela sua aparência. O vendedor, assim sobremisso, adiantava o mundo de outras compreensões. Até os meninos, por graça de sua sedução, se esqueciam do comportamento. Eles se tornavam mais filhos da rua que da casa. O passarinheiro se adentrara mesmo nos devaneios deles: 
_Faz conta eu sou vosso tio. 

As crianças emigravam de sua condição, desdobrando-se em outras felizes existências. E todos se familiavam, parentes aparentes. 
_Tio? Já se viu chamar de tio a um preto? 

Os pais lhes queriam fechar o sonho, sua pequena e infinita alma. Surgiu o mando: a rua vos está proibida, vocês não saem mais. Correram-se as cortinas, as casas fecharam suas pálpebras. 

Parecia a ordem já governava. Foi quando surgiram as ocorrências. Portas e janelas se abriam sozinhas, móveis apareciam revirados, gavetas trocadas. 

Em casa dos Silvas: 
_Quem abriu este armário? 
(...)
Em casa dos Peixotos: 
_Quem espalhou alpista na gaveta dos documentos?
(...)
No lar do presidente do município: 
_Quem abriu a porta dos pássaros? 
(...) 

No somado das ocorrências, um geral alvoroço se instalou no bairro. Os colonos se reuniram para labutar em decisão. Se juntaram em casa do pai de Tiago. O menino iludiu a cama, ficou na porta escutando as graves ameaças. Nem esperou escutar a sentença. Lançou-se pelo mato, rumo ao embondeiro. O velho lá estava ajeitando-se no calor de uma fogueira. 
_Eles vem aí, vêm-te buscar. 

Tiago ofegava. O vendedor não se desordenou: que já sabia, estava à espera. O menino se esforçava, nunca aquele homem lhe tivera tanto valor. 
_Foge, ainda dá tempo. 
Mas o vendedor se confortava, em sonolentidão. Sereno, entrou no tronco e ali se ademorou. Quando saiu já vinha gravatado, de fato mesungueiro(2).  (...) 
_E porquê vestiste o fato? 
Explicou: ele é que era natural, rebento daquela terra.Devia de saber receber os visitantes. Lhe competia o respeito, deveres de anfitrião. 
_Agora, você vai, volta na sua casa. 
(...)

Barulhosos, os colonos foram chegando. Cercaram o lugar. O miúdo fugiu, escondeu-se, ficou à espreita. Ele viu o passarinheiro levantar-se, saudando os visitantes. Logo procederam pancadas, chambocos, pontapés. O velho parecia nem sofrer, vegetável, não fora o sangue. Amarram-lhe os pulsos, empurraram-lhe no caminho escuro. (...) O menino, de pronto, se decidiu. Lançou-se nos matos, no encalço da comitiva. 

(...) A voz do passarinheiro lhe chegava, vinda de além-grades. Agora, podia ver o rosto de seu amigo, o quanto sangue lhe cobria. Interroguem o gajo, espremam-no bem. Era ordem dos colonos, antes de se retirarem. O guarda continenciou-se, obediente. Mas nem ele sabia que segredos devia arrancar do velho. Que raivas se comprovavam contra o vendedor ambulante? Agora, sozinho, o retrato do detido lhe parecia isento de suspeita. 
_Peço licença de tocar. É uma música da sua terra, patrão. 
O passarinheiro ajeitou a harmónica, tentou soprar. Mas recuou da intenção com um esgar. 
_Me bateram muito-muito na boca. É muita pena, senão havia de tocar. 

O polícia lhe desconfiou. A gaita-de-beiços foi lançada pela janela, caindo junto do esconderijo de Tiago. Ele apanhou o instrumento, juntou seus bocados. Aqueles pedaços lhe semelhavam sua alma, carecida de mão que lhe fizesse inteira. O menino se enroscou, aquecido em sua própria redondura. Enquanto embarcava no sono levou a muska à boca e tocou como se fizesse o seu embalo. Dentro, quem sabe, o passarinheiro escutasse aquele conforto? 

Acordou num chilreino. Os pássaros! (...) As portas estavam abertas, a prisão deserta. O vendedor não deixara nem rasto, o lugar restava amnésico. Gritou pelo velho, responderam os pássaros. 

Decidiu voltar à árvore. Outro paradeiro para ele já não existia. Nem rua nem casa: só o ventre do embondeiro. (...) Entrou no tronco, guardou-se na distância de um tempo. Valia a pena esperar pelo velho? No certo, ele se esfumara, fugido dos brancos. No enquanto, ele voltou a soprar na muska. Foi-se embalando no ritmo, deixando de escutar o mundo lá fora. Se guardasse a devida atenção, ele teria notado a chegada das muitas vozes. 
_O sacana do preto está dentro da árvore. 
Os passos da vingança cercavam o embondeiro, pisando as flores. 
_É o gajo mais a gaita. Toca, cabrão, que já danças! 

As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas. Dentro, o menino desatara um sonho: seus cabelos se figuravam pequenitas folhas, pernas e braços se madeiravam. Os dedos, lenhosos, minhocavam a terra. (...) Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a sedução da cinza. Então, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes.

(1) Muska - nome que, em chissena, se dá à gaita-de-beiços.
(2) Mesungueiro - de “mesungo”, homem branco
-------------------------------

Imagem: fotografia tirada em Pemba, província de Cabo Delgado, Moçambique. Notem as proporções da árvore em relação a pessoa sentada a sua sombra, a extrema direita.