segunda-feira, 11 de junho de 2012

Alê d'Ilê e a Música


Ouvindo Gil, tomei coragem para escrever sobre Alê d’Ilê. Compartilho a certeza de que o texto não será o suficiente para expressar tudo o que eu queria. Assumo o risco e, desde já, desculpo-me pelo pouco.

Diz a lenda que nosso personagem aprendeu a tocar violão por acaso. Menino franzino gostava mesmo era de jogar futebol. Mas um dia o tombo no campinho de terra fez seu peso cair sobre o magro braço. E o partiu. Tristeza para ele seu não correr atrás da bola. Restou o violão no período de recuperação. E o menino tomou gosto e cresceu na melodia e habilidade do instrumento. Sozinho se alegrou e aprendeu a arte que veio a dividir com tantos.

Alê d’Ilê hoje mora em Macapá- AP. Nascido em Porecatu- PR, fez o percurso inverso d’A Violeira, de Chico. A sina deste caprichoso e não nordestino, mais que ir pra um lugar, era fazer música e conviver com a língua francesa. Assim subiu o país, saindo de sua terra-sul, passando brevemente pelo centro-oeste, e finalmente se estabelecendo no norte. Mambembe, cigano...

 A cara amiga perdoou-lhe por não fazer uma visita quando veio ao sudeste. Nada de cartas ao portador. As notícias, no correio eletrônico chegaram, com canção anexada. Uma alegria foi sabê-lo musicando pelas bandas de lá. Outra alegria foi comprar seu CD em uma loja virtual e, ao visitar a terra-sul, receber uma versão autografada.

Faz tempo que não vejo Alê d’Ilê.  Mas o tempo em que estivemos na mesma cidade me acompanha, quer seja no sudeste daqui ou da África. Inclusive, uma peça de roupa que trouxe pra ele de Moçambique ainda está preguiçosamente guardada em meu armário. Talvez à espera de um endereço não eletrônico para ser enviada. Nem sei se o pedi. Aproveito e registro aqui a solicitação.

O que sei é que Alê vive vizinho de Dona Guiana, a francesa que o ajuda a treinar a língua que estudou em sua Faculdade de Letras. Francesa é caso antigo, que até já virou canção (1). Sei também que ele gravou em seu CD uma belíssima música instrumental chamada Justina (2), para uma outra Dona, essa muito mais importante do que a anteriormente citada. 

Às vezes, na viagem diária de volta pra casa, eu o ouço. Um dia, degustando o som me peguei chorando. Olhando pela janela do ônibus, a lua alta brilhava... Chorava porque  sabia que era a mesma que brilhava para as gentes lá de casa, as pessoas mais amadas, “a minha gente que me espera voltar” (3) com as notícias dessa “minha terra, mundo inteiro”.

No fim, a Estrada Companheira (4) contém um coração a mil que amadureceu, gestou e pariu letras e melodias que soam histórias tão pessoais e tão gerais. Contém um menino franzino e um músico; as escadarias de uma igreja e a fronteira de um país; as águas do rio Paranapanema e as do Araguari.

Gil, no aparelho de som, hoje cantava Palco, como em um show de 1997, em Bauru. E como os tempos são outros, escrevi este texto, que agora vira post para enviar Pela Internet.
  
Músicas de Alê d’Ilê citadas: (1) Voulez vous Dancer,  (2) Justina, (3) I’I Pororoca e (4) Estrada Companheira
Para ouvir: Myspace
Para Comprar o CD: Visite o site da Livraria Cultura. Clique AQUI
 
Músicas de referência: A Violeira, Caro Amigo e Mambembe (Chico Buarque)/ Palco, Corações a Mil e Pela Internet (Gilberto Gil)
Imagens: fotografia de Carllos Bozelli e ilustracao de Nicolas Simon

E.T: Desde aqui, mando-te “lembranças”, querido Preto, como diria o preto meu avô. Posso também parafrasear (?) Carl Sagan e dizer que: diante da vastidão do tempo e da imensidão do espaço, é uma honra dividir um planeta e uma época com você.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O Embondeiro Que Sonhava Pássaros

Sim, faz muito tempo que não publico nada. E esta não é necessariamente uma "volta". Seja como for, gostaria de compartilhar um conto de Mia Couto.

O texto abaixo era um rascunho dezembro de 2011, quando pacientemente digitei os trechos deste conto para vocês. Mas naquele dezembro, algo estava travando meu computador que, por fim, veio a "morrer". Assim, não voltei mais a isso. Até agora.


O Embondeiro Que Sonhava Pássaros

[Mia Couto, Cada Homem é uma Raça]

 Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada.

Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida. Talvez, por razão disso, ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássaros não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro.



Todas manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas. (...) _Mãe, olha o homem dos passarinheiros! 

E os meninos inundavam as ruas. As alegrias se intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças. O homem puxava de uma muska (1) e harmonicava sonâmbulas melodias. O mundo inteiro se fabulava. 

Por trás das cortinas, os colonos reprovavam aqueles abusos. Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos - aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que voltasse ao seu devido lugar. Contudo, os pássaros tão encantantes que são - insistiam os meninos. Os pais se agravavam: estava dito. 

Mas aquela ordem pouco seria desempenhada. Mais que todos, um menino desobedecia, dedicando-se ao misterioso passarinheiro. Era Tiago, criança sonhadeíra, sem outra habilidade senão perseguir fantasias. Despertava cedo, colava-se aos vidros, aguardando a chegada do vendedor. O homem despontava e Tiago descia a escada, trinta degraus em cinco saltos. Descalço, atravessava o bairro, desaparecendo junto com a mancha da passarada. O sol findava e o menino sem regressar. Em casa de Tiago se poliam as lástimas: 
_Descalço, como eles. 

O pai ambicionava o castigo. Só a brandura materna aliviava a chegada do miúdo, em plena noite. O pai reclamava nem que fosse esboço de explicação: 
_Foste a casa dele? Mas esse vagabundo tem casa? 

A residência dele era um embondeiro, o vago buraco do tronco. Tiago contava: aquela era uma árvore muito sagrada, Deus a plantara de cabeça para baixo. 
_Vejam só o que o preto anda a meter na cabeça desta criança. 

(...) 
Fosse por desdenho dos grandes ou por glória dos pequenos, a verdade é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi virando assunto no bairro do cimento. Sua presença foi enchendo durações, insuspeitos vazios. Conforme dele se comprava, as casas mais se repletavam de doces cantos. Aquela música se estranhava nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia àquela terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os residentes, estrangeirando-lhes? Ou culpado seria aquele negro, sacana, que se arrogava a existir, ignorante dos seus deveres de raça? O comerciante devia saber que seus passos descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com aquela desobediência, acusando o tempo. Sentiam ciúmes do passado, a arrumação das criaturas pela sua aparência. O vendedor, assim sobremisso, adiantava o mundo de outras compreensões. Até os meninos, por graça de sua sedução, se esqueciam do comportamento. Eles se tornavam mais filhos da rua que da casa. O passarinheiro se adentrara mesmo nos devaneios deles: 
_Faz conta eu sou vosso tio. 

As crianças emigravam de sua condição, desdobrando-se em outras felizes existências. E todos se familiavam, parentes aparentes. 
_Tio? Já se viu chamar de tio a um preto? 

Os pais lhes queriam fechar o sonho, sua pequena e infinita alma. Surgiu o mando: a rua vos está proibida, vocês não saem mais. Correram-se as cortinas, as casas fecharam suas pálpebras. 

Parecia a ordem já governava. Foi quando surgiram as ocorrências. Portas e janelas se abriam sozinhas, móveis apareciam revirados, gavetas trocadas. 

Em casa dos Silvas: 
_Quem abriu este armário? 
(...)
Em casa dos Peixotos: 
_Quem espalhou alpista na gaveta dos documentos?
(...)
No lar do presidente do município: 
_Quem abriu a porta dos pássaros? 
(...) 

No somado das ocorrências, um geral alvoroço se instalou no bairro. Os colonos se reuniram para labutar em decisão. Se juntaram em casa do pai de Tiago. O menino iludiu a cama, ficou na porta escutando as graves ameaças. Nem esperou escutar a sentença. Lançou-se pelo mato, rumo ao embondeiro. O velho lá estava ajeitando-se no calor de uma fogueira. 
_Eles vem aí, vêm-te buscar. 

Tiago ofegava. O vendedor não se desordenou: que já sabia, estava à espera. O menino se esforçava, nunca aquele homem lhe tivera tanto valor. 
_Foge, ainda dá tempo. 
Mas o vendedor se confortava, em sonolentidão. Sereno, entrou no tronco e ali se ademorou. Quando saiu já vinha gravatado, de fato mesungueiro(2).  (...) 
_E porquê vestiste o fato? 
Explicou: ele é que era natural, rebento daquela terra.Devia de saber receber os visitantes. Lhe competia o respeito, deveres de anfitrião. 
_Agora, você vai, volta na sua casa. 
(...)

Barulhosos, os colonos foram chegando. Cercaram o lugar. O miúdo fugiu, escondeu-se, ficou à espreita. Ele viu o passarinheiro levantar-se, saudando os visitantes. Logo procederam pancadas, chambocos, pontapés. O velho parecia nem sofrer, vegetável, não fora o sangue. Amarram-lhe os pulsos, empurraram-lhe no caminho escuro. (...) O menino, de pronto, se decidiu. Lançou-se nos matos, no encalço da comitiva. 

(...) A voz do passarinheiro lhe chegava, vinda de além-grades. Agora, podia ver o rosto de seu amigo, o quanto sangue lhe cobria. Interroguem o gajo, espremam-no bem. Era ordem dos colonos, antes de se retirarem. O guarda continenciou-se, obediente. Mas nem ele sabia que segredos devia arrancar do velho. Que raivas se comprovavam contra o vendedor ambulante? Agora, sozinho, o retrato do detido lhe parecia isento de suspeita. 
_Peço licença de tocar. É uma música da sua terra, patrão. 
O passarinheiro ajeitou a harmónica, tentou soprar. Mas recuou da intenção com um esgar. 
_Me bateram muito-muito na boca. É muita pena, senão havia de tocar. 

O polícia lhe desconfiou. A gaita-de-beiços foi lançada pela janela, caindo junto do esconderijo de Tiago. Ele apanhou o instrumento, juntou seus bocados. Aqueles pedaços lhe semelhavam sua alma, carecida de mão que lhe fizesse inteira. O menino se enroscou, aquecido em sua própria redondura. Enquanto embarcava no sono levou a muska à boca e tocou como se fizesse o seu embalo. Dentro, quem sabe, o passarinheiro escutasse aquele conforto? 

Acordou num chilreino. Os pássaros! (...) As portas estavam abertas, a prisão deserta. O vendedor não deixara nem rasto, o lugar restava amnésico. Gritou pelo velho, responderam os pássaros. 

Decidiu voltar à árvore. Outro paradeiro para ele já não existia. Nem rua nem casa: só o ventre do embondeiro. (...) Entrou no tronco, guardou-se na distância de um tempo. Valia a pena esperar pelo velho? No certo, ele se esfumara, fugido dos brancos. No enquanto, ele voltou a soprar na muska. Foi-se embalando no ritmo, deixando de escutar o mundo lá fora. Se guardasse a devida atenção, ele teria notado a chegada das muitas vozes. 
_O sacana do preto está dentro da árvore. 
Os passos da vingança cercavam o embondeiro, pisando as flores. 
_É o gajo mais a gaita. Toca, cabrão, que já danças! 

As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas. Dentro, o menino desatara um sonho: seus cabelos se figuravam pequenitas folhas, pernas e braços se madeiravam. Os dedos, lenhosos, minhocavam a terra. (...) Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a sedução da cinza. Então, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes.

(1) Muska - nome que, em chissena, se dá à gaita-de-beiços.
(2) Mesungueiro - de “mesungo”, homem branco
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Imagem: fotografia tirada em Pemba, província de Cabo Delgado, Moçambique. Notem as proporções da árvore em relação a pessoa sentada a sua sombra, a extrema direita.