terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Para que um 29 de janeiro¹?

Aqui não há teorias sobre o surgimento de datas.
Melhor que ler é viver, ouvir, ver, estar.
Mas como muitos não estavam, escrevendo empresto meus olhos, ouvidos e alguns pensamentos:

Era por volta das 22h do dia 27 de novembro de 2013. Acabava de ocorrer a histórica posse do Conselho Estadual dos Direitos da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Estado de São Paulo.

Histórica porque foi a primeira, com direito a eleições diretas, regionalizadas e por seguimento. Mas o que presenciaríamos a seguir, se não histórico, era, ao menos, inacreditável naquele contexto.

Saindo da câmara municipal de São Paulo, após o coquetel da posse, as pessoas se aglomeravam em frente ao prédio para trocar suas últimas impressões sobre o evento, combinar carona para o lugar de origem e outras miudezas. Eis que em meio ao zumzumzum ouve-se gritos. E choro.

Caminhei em direção à confusão. Abro espaço e passo. Queria verificar o que estava acontecendo.  E quando vi, ouvi, senti a cena, levei alguns segundos para acreditar:

Na calçada estavam dois conselheiros recém empossados. Eles em pé, cabeça erguida, gritavam com uma jovem trans, apontavam para ela.
Ela, acuada, cabisbaixa, sentada na floreira que enfeita as grades da “casa do conselho” de antigamente, ou da “casa do povo” dos atuais otimistas. Chorava.

O gênero masculino acusava. O gênero feminino calava.
Como não intervir?
_Ela é louca _dizia “um”².
_Uma viciada _ dizia “outro”.

Argumentei que aquilo era violência. Pedi que parassem de gritar. Que aquela cena era absurda, que a moça estava sendo constrangida, acusada e ofendida. Que aquela exposição era desnecessária...
 _Ofendido fiquei eu_ aos berros retrucou “um” _ pois me buscaram no meio da cerimônia porque ela estava me chamando ³.
_Eu só estou pedindo para que parem de gritar! _ falei.

_Você não a conhece, é uma viciada em hormônios. Saiu e foi ali comprar_ dizia “outro” apontando para o lado oposto da rua.
_Se você quiser eu mando o prontuário dela pro seu email _ falou “um”_ aí você vai conhecer toda a história dela.
_Quando eu quiser saber da história dela, quem me contará será ela e não vocês, que gritam ao quatro ventos ou propõem emails com prontuário alheio_ respondi, pensando que acesso era aquele que “um” tem a prontuários...

_Está vendo “um”_ disse "outro" se dirigindo ao amigo_ essa aí só quer saber de "clinicar", não se interessa em saber o que acontece com as pessoas, não quer saber de nada e fica se intrometendo!

Incrédula, me afastei. Não havia possibilidade de interlocução...
E os gritos se transformaram em vozes altas e foram se dispersando as declarações absurdas, no meio do Viaduto Jacareí, nº 100, da cidade de São Paulo.

Naquela noite, eu e outras tantas pessoas, fomos violentadas. Tanto quem teve sua história (?) espalhada para estranhxs quanto quem foi submetidx a essa cena de violência. Violência psicológica devido ao constrangimento e humilhação. Violência moral devido a difamação.

A reunião na câmara, que era para ser apenas de comemoração ao nascimento de um conselho de direitos, foi cenário da exposição da vida íntima de uma pessoa. Pessoa esta que pertence a uma das populações mais vulneráveis que temos notícia na atualidade: a população de travestis e transexuais.  Afinal, eu que nunca troquei meia palavra com aquela moça, hoje, tenho idéias, verdadeiras ou não, de que ela ainda é uma adolescente, tomava hormônios de 4 em 4 horas, está sob a guarda do Estado e um dia foi “ajudada” por aqueles que estavam a ofendendo.

No dia 27 de novembro de 2013, também tivemos uma demonstração do machismo vigente no seio na comunidade LGBT: dois homens do gênero masculino violentaram uma trans do gênero feminino em público. 
Relato o que vi, mas eu não estava sozinha!

Infelizmente coisas assim vão continuar acontecendo enquanto os homens gays e bi não enxergarem que o que alimenta a homofobia é o machismo; enquanto xs machistas não perceberem que o machismo também xs oprime; enquanto xs oprimidxs não descobrirem que elxs é que dão poder ao opressor; enquanto as pessoas não perceberem que somos todxs iguais, apesar deste sistema que ensina que umas pessoas são melhores que as outras, que tudo é uma questão de “mérito”, de “escolha”, de “sorte”,  de “destino”, ou seja lá o que for que tira a responsabilidade coletiva (minha, sua e deles) dos rumos que as pessoas e a nossa sociedade toma.

Não sou otimista. Creio que a humanidade não deu certo, e nem dará! Mas podemos lutar para ter alguns bons exemplos de exceção, que obviamente serão para confirmar a regra anterior. 
Devaneios? Companhia? 
...
(1) Dia da Visibilidade Trans

(2) Não cito nomes porque esta postagem deseja gerar reflexão e não fazer uma denúncia. No mais, como já diz o subtítulo do blog devaneios são devaneios...

(3) No outro dia pela manhã fiquei sabendo por outras moças trans que o “um” foi chamado durante a cerimônia de posse porque a garota estava trancada no banheiro e ameaçava se matar, saltando da janela d prédio. Inúmeras pessoas já haviam tentado em vão que ela abrisse a porta de onde estava. Contaram-me ainda que “um” chegou na porta do banheiro, fez-lhe uma ameaça e ela imediatamente abriu a tal porta. Essa parte eu não (ou)vi, apenas ouvi dizer. Porém, seja lá como for, uma pessoa que está ameaçando se matar durante a posse de um conselho de direitos está de fato em sofrimento e pedindo ajuda. Não é motivo sequer para usarmos a palavra “incômodo”, quem dirá motivo para violenta-la ainda mais, no privado ou no público.


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